quinta-feira, 26 de março de 2015

Vindalho de Porco (Vindaloo)

              O vindalho de porco, hoje quase sempre designado por “vindaloo”, é talvez o mais famoso prato da cozinha goesa, miscigenação única entre duas culinárias tão diversas como as portuguesa e a indiana, sendo o termo a contracção dessa expressão lusa tão conhecida que é “vinha de alhos”.
O vindalho é um prato rijo e que não está ao alcance de todos os palatos, embora hoje existam por aí umas versões suavizadas de “vindaloo” mas que, naturalmente, são tudo menos um vindalho goês, que tirar o picante a um vindalho é o mesmo que lhe tirar a alma. 
Foram garbosos vindalhos no velho “Zuari”, ali entre Santos e a Lapa, os responsáveis por muitos suores frios e quentes da minha vida, os olhos mareados naquele lugar único onde ainda hoje é possível ver algum velho goês que, enquanto espera pela refeição vai trincando com displicência, não alguma azeitona, um pedaço de pão com manteiga ou uma fatia de queijo, mas sim malaguetas de um pratinho que o Sr. Orlando trata de ali pôr para entreter.   
É assim o vindalho que pode comer em Goa, ou no “Zuari”, ou em sua casa se o fizer:

Ingredientes:

Carne de porco, limpa
Azeite ou óleo
Cebola
Tomate concentrado
Coentros frescos
Malagueta verde
Vinha de alhos e especiarias (a)
Arroz Basmati

  a)   Vinha de alhos e especiarias:

Açafrão das Índias (cúrcuma)
Alhos
Cravinho
Cominhos
Cardamomo
Pimenta preta em grão
Gengibre fresco
Canela em pau
Coentro (sementes)
Mostarda branca (sementes)
Malaguetas vermelhas
Sal
Vinagre de vinho

Preparação:

Com estes ingredientes (e mais cebola que não ficou na fotografia)
se faz um vindalho de porco que, como o seu nome indica, há-de começar pela vinha de alhos, que neste caso se prepara triturando num almofariz todos os elementos indicados até obter uma pasta.
Nesta fase, se pensa que poderá não aguentar o picante final, experimente suprimir as sementes das malaguetas, usando apenas a parte vermelha. As vagens de cardamomo devem ser libertadas da casca, utilizando-se apenas as sementes que contêm.
Envolva bem a carne previamente cortada em cubos e deixe no frigorífico por 12 horas, ou para o dia seguinte.
Frite a cebola picada no azeite mas sem deixar alourar, junte a carne temperada
e leve a lume forte por uns minutos, mexendo sempre. Junte malagueta verde picada, o tomate, água que baste para cobrir a carne e deixe a fervinhar, tapada, em lume baixo por cerca de uma hora ou até a carne estar tenra e o molho espesso

e salpique de coentro verde picado grosseiramente.
Sirva acompanhado com arroz basmati cozido em água sem sal.


 Nota: ...para "apagar" fogos destes, não há como uns gomos de laranja. Fazem milagres!

sexta-feira, 20 de março de 2015

Cachaço Anchovado a Baixa Temperatura

              Sendo a enorme maioria dos actos culinários formas aparentadas de transformar alimentos através da administração de calor, não será de estranhar que a simples modificação do paradigma habitual neste fornecimento energético ao sistema termodinâmico que é um tacho ao lume, provoque modificações radicais no resultado final da operação.
Já aqui abordei por diversas ocasiões essa forma subtil de cozinhar que é vulgarmente designada por “cocção a baixa temperatura”, aberta ou a vácuo, que consiste basicamente em sujeitar uma proteína animal, carne ou peixe, às temperaturas limite em que as proteínas hidrolisam, sempre muito abaixo da temperatura de ebulição da água de modo a evitar a dessecação da peça.
Irei hoje levar mais longe esta  opção, cozinhando um cachaço de porco com anchovas durante oito horas a 75ºC, em ambiente fechado mas não a vácuo, obtendo assim o melhor de dois mundos: a textura única da carne cheia de sucos que se obtém na baixa temperatura, aliada ao sabor de um cozinhado no forno.

Ingredientes:

Cachaço de porco desossado
Sal
Limão
Pimenta
Pimentão
Alhos
Filetes de anchova
Vinho branco
Molho de soja “dark

Preparação:

Apare o cachaço de forma a eliminar gorduras, peles e pedaços de carne que sempre traz agarrados, dando-lhe uma forma regular e uniforme.
Reserve as gorduras retiradas.
Faça uma salmoura cítrica, dissolvendo um generoso punhado de sal em água fria e juntando-lhe sumo e casca de limão. Mergulhe o cachaço aparado nesta salmoura e deixe no frio por 24 horas, de modo a perder o excesso de sangue, hidratar e salgar.
Seque a carne, faça-lhe uns orifícios no sentido do comprimento
e com o auxílio de uma pinça introduza nestes orifícios filetes de anchova
(reserve dois filetes) de modo a que fiquem a percorrer internamente todo o comprimento da peça.
Derreta ao lume as gorduras que reservou quando aparou o cachaço
(razão porque deve fazê-lo em casa e não trazer o cachaço já limpo do talho) e na banha apurada, sele o cachaço em lume muito forte, por todos os lados e de modo a que faça uma crosta tostada mas que fique cru imediatamente abaixo dessa crosta.
Com o auxílio de uma agulha curva, dê então uns pontos nas aberturas que fez para rechear de anchova, furos esses que ficam bem visíveis após a selagem.
Faça uma mistura da gordura onde selou a carne, com vinho branco, pimenta, pimentão, alhos esmagados e sal e regue a carne com este líquido.

Leve o cachaço ao forno, dentro de um recipiente fechado, nunca o abrindo nas primeiras cinco horas, sempre a 75ºC*. A partir da quinta hora, destape de hora a hora e verifique a temperatura do centro da peça, utilizando para o efeito sempre o mesmo orifício para introduzir a sonda do termómetro**. Retire quando esta temperatura atingir os 73ºC, o que vai variar consoante o tamanho da peça e as condições do forno e recipiente; no meu caso demorou oito horas.
Leve o abundante molho formado ao lume para reduzir, juntando-lhe dois ou três filetes de anchova esmagados e uma colher de sopa de molho de soja escuro (na falta do molho de soja, substitua a anchova e o molho de soja por molho inglês).
Corte fatias muito finas e sirva com acompanhamentos a seu gosto.


Notas: * As temperaturas indicadas pela maioria dos fornos domésticos são tudo menos confiáveis, chegando por vezes a disparidades perfeitamente anedóticas. Antes de avançar para estas preparações em que a temperatura é rigorosa, deverá aferir o comportamento do seu forno, o que se faz comparando as temperaturas indicadas no mostrador  com as medidas por um termómetro culinário. A tabela assim construída, permitir-lhe-á saber sempre a temperatura real que existe dentro do seu forno.
** Continua a ser normal verem-se cozinhas cheias dos mais diversos aparelhos e artefactos culinários, às vezes verdadeiramente técnicos e até profissionais, mas onde, lamentavelmente, falta esse utensílio imprescindível que é o termómetro. Tradicional ou digital tanto faz, cozinhar sem ter à mão esse recurso essencial é como conduzir um automóvel de olhos vendados.

quinta-feira, 5 de março de 2015

Carapaus Alimados

   Dos pequenos “jaquinzinhos” aos grandes chicharros de quilo, o humilde carapau é dos meus peixes preferidos e não me ocorre algum modo de cozinhá-los que os prejudique ou lhes tire a nobreza.     
Se no entanto tivesse de eleger algum modo de preparação, essa escolha decerto acabaria por cair num daqueles pratos em que o carapau é semi-desidratado pelo sal, enrijando-lhe as carnes suaves e dando-lhes uma textura de tunídeo que a torna maravilhosa. Estou a pensar num ceviche de carapau que já aqui deixei e, claro, nessa obra-prima algarvia que dá pelo nome de carapaus alimados ou charrinhos alimados, prato para o qual é essencial o tempo, esse querido ingrediente hoje tão esquecido na voragem das receitas “despachadas”. Carapaus alimados é prato que não se compadece com essas funestas correrias culinárias: quem o quiser comer em toda a sua glória, conte, não com uma, duas ou mesmo três horas, mas sim com três dias, nem mais nem menos. Mãos à obra!

Ingredientes:

Carapaus
Sal grosso
Pimenta preta
Azeite
Alhos
Cebola (facultativo)
Acompanhamento (pão, batata cozida…)

Preparação:

Podem-se alimar carapaus de qualquer tamanho, embora normalmente não se usem os exemplares muito grandes. A minha preferência vai para aqueles carapaus médios que têm o porte de uma sardinha das maiores e a vantagem de serem vendidos  a um preço quase simbólico, já que não há para eles muita procura, “são pequenos para grelhar mas grandes para fritar”.

Corte-lhes a cabeça, retire as vísceras e lave bem. Salgue com abundante sal grosso, dos dois lados e deixe no frio por 48 horas tendo o cuidado de colocá-los num recipiente que permita que a água que vai escorrer se possa escoar.

Passados os dois dias os carapaus estão visivelmente emagrecidos devido à desidratação que o sal operou. Lave bem de todo o sal e introduza-os numa panela com água a ferver.
Assim que a água começar a retomar o borbulhar, apague a fonte de calor e deixe a panela tapada por cinco minutos, após os quais deve escorrer a água quente e arrefecer os carapaus cobrindo-os de água fria.
Alimar os carapaus (que muita gente associa ao limão ou algo cítrico) é apenas esta operação de limpeza de peles e algumas espinhas (limar a pele ao carapau) que se faz deslizando o dedo
sobre a superfície da pele, que sai prontamente
e retirando depois as barbatanas dorsal e ventral, o que deixa este característico sulco no peixe depois de arranjado.
Disponha-os num recipiente onde fiquem bem ajustados
e onde, após generosamente cobertos de fatias de alho e salpicados com pimenta possam ficar quase imersos em azeite e uns golpes de vinagre de vinho.
Espere mais um dia, em que os ácidos do azeite e do vinagre vão finalizar a transformação da carne do carapau, para provar enfim esta delícia, acompanhados como quiser.

É comum dispor umas rodelas finas de cebola nova sobre o peixe momentos antes de servir.