Chegou a medo, primeiro a enfrentar todos
os preconceitos e até limitações legais, que a ignorância é, como se sabe, a
mãe de todas as arrogâncias e prepotências. Era a carne maturada e foi,
lentamente, desbravando estatuto à custa de meia dúzia de entusiastas e das
suas portentosas qualidades de sabor e textura. O que era ainda há poucos anos
uma iguaria quase secreta que se ia comer a sítios especiais e com um
sentimento de quase-transgressão, é hoje comum a nível da restauração média e,
finalmente, até nas nossas cozinhas, embora muito pouco saibamos ainda sobre
esta maravilha gastronómica de que já Olleboma, na sua Culinária Portuguesa,
escrita nos anos 30 do sec.XX, ao falar da carne para o famoso Bife à Marrare,
preconizava “ 1 fatia de carne de 150 gramas de pojadouro ou
alcatra que tenha estado em frigorífico à temperatura de um a quatro graus positivos
durante cinco a seis dias…”. Ao
que parece, já há um século se sabia que a maturação da carne é o único caminho
para a obtenção de um bife perfeito.
Quando qualquer animal morre,
iniciam-se dois processos distintos que levam à destruição do corpo: um
processo enzimático que se desenvolve no interior da cada célula e que vai
“digerindo” as grandes moléculas responsáveis pela dureza das fibras
musculares, e um outro exterior, bacteriano. É este último o responsável pela
putrefacção, o apodrecimento, que torna
a carne imprópria para consumo e mesmo tóxica.
Maturar carne é proporcionar-lhe
um ambiente apropriado para que se desenvolva o tal processo interno,
enzimático, mas impedindo o ataque bacteriano exterior que a faria apodrecer em
vez de maturar. Para isso, existem dois processos, a que chamaremos
sucintamente, processo “húmido” e processo “seco”.
O processo húmido é o mais fácil
e vulgar, sendo usado nas carnes maturadas que se vendem nas grandes
superfícies: consiste em fechar as peças em vácuo e deixá-las assim embrulhadas
sem contacto com o ar num ambiente refrigerado durante um certo número de dias,
geralmente entre sete e vinte e dois, após o que pode ser consumida. Muita da
carne que é importada refrigerada e embalada em vácuo, como as “picanhas” sul-americanas,
é na verdade maturada, nem que seja pelo tempo de transporte refrigerado,
embora isso não seja em geral mencionado, para não levantar desconfianças e afastar
clientes, que aqui em Portugal incensa-se geralmente à frescura.
A carne maturada por este
processo é boa, mas o processo-rei, aquele que verdadeiramente interessa ao grande
apreciador de carne é, sem dúvida, o processo de maturação “seco”, que produz
algo que é um verdadeiro desafio de excelência ao paladar mais exigente.
Neste processo seco, os animais,
que devem ser gordos e adultos, são dependurados inteiros após o abate,
refrigerados, e sofrem assim um primeiro “amaciamento” durante duas a três
semanas, sendo depois desmanchados em grandes peças que iniciam então a
maturação durante mais trinta ou sessenta dias, embrulhadas em pano e numa
câmara fria e arejada, durante os quais a parte exterior vai secar e passar por
uma dramática alteração de aspecto,
enegrecendo e ganhando até bolores.É do interior desta “múmia”, que se porta na verdade como o isolante perfeito contra os ataques bacterianos, que sai a carne maturada.
As perdas podem atingir mais de 30% depois da peça descascada da parte seca, das gorduras externas e de ossos, mas a peça limpa e densa que sai dali vale bem o preço relativamente alto que custa, é pura delícia com o sabor a carne concentrado pela secagem relativa e pela gordura de animal criado em pastagem. A tenrura é indescritível, o uso de faca é realmente supérfluo e, aqui, não se trata apenas de uma metáfora. É comer uma carne bem mais tenra que vitela de leite mas que não é vitela, nem vitelão, nem sequer novilho. É vaca!
O amante dos prazeres da carne não tem mais que se debater perante a eterna opção entre vitela tenra mas insípida e vaca, dura mas saborosa. A carne maturada reúne o melhor de dois mundos.
Pense bem antes de iniciar esta aventura gustativa sem retorno. Depois de se provar carne maturada, dificilmente se volta atrás!
A VACA* é o nome que Pedro Vivo
deu ao seu talho** dedicado à carne maturada a “seco”, onde já não é preciso
ser chefe ou dono de restaurante para poder ir lá comprar um bife para o
almoço,
com a particularidade de este ter estado a ser preparado pelo tempo,
desde o pasto alentejano, durante os últimos dois ou três meses!
É um talho sui generis para uma carne sui
generis. Ali não há o balcão tradicional, apenas uma grande vaca decorativa
no meio do espaço
e depois, à volta, uma sala de trabalho e as câmaras onde se
vêem as feias grandes peças de onde emergirão as maravilhas gustativas que
encerram.
Digo o que pretendo, que pode ir
de vazia, alcatra ou rosbife, todos fabulosos, a um simples ossobuco, para outro tipo de delícia,
e deixo-me guiar pela experiência de Pedro Vivo. Nunca me
dei mal!
Notas: * Poderão estranhar os meus leitores mais assíduos a menção
a uma marca comercial neste blog, em
geral avesso a patrocínios e publicidade. Na verdade, trata-se apenas de
serviço público, já que “A Vaca” é o único local onde um particular pode
adquirir carne maturada pelo processo “seco” descrito. Existem outros para o
processo “húmido”, mas não é do que hoje aqui tratamos.
** “A Vaca” – Rua Abade Faria,
56-A (ao Areeiro)
Akihacarne - R. Arq. Cassiano Barbosa, 136, Pinheiro Manso - Porto