............. Fora do que é costume, fui ao Pingo Doce por esse meio-dia!
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Foi então que percebi: as velhotas que constituem a esmagadora maioria da população do bairro popular lisboeta onde moro já não cozinham!
Agora acotovelam-se junto às vitrines da comida pronta, disputando as melhores postas do bacalhau no forno com broa ou a lula recheada com as suas batatinhas assadas – D. Celeste, então hoje vai um medalhãozinho de vitela? – e a D. Celeste que não, a lasagna é que lhe está a sorrir.
E lá segue para a caixa, no carrinho onde antes ia o melhor molho de grelos, as cebolas, a carne e o carapau para assar ao almoço, seguem agora uns químicos para a lavagem da roupa e do corpo, a couvette da “sopinha caseira do dia” e a outra couvette da lasagna gelada e que o microondas lá em casa vai ressuscitar num instante – Já viu, vizinha, ele hoje pôs-me tanto, que vou deixar a sopa para a noite e já tenho o dia feito! – isto para outra idosa que a seguia na linha de caixa com igual carrego.
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Quando cheguei ao talho, em vez de puxar o papelucho da maquineta da vez, tive de tocar uma campaínha para aparecer o talhante que estava lá para dentro, à míngua de freguesas.
Na peixaria, que é ao lado, a mesma desolação: um jovem comprava quantidades prodigiosas de camarão congelado acompanhado de uma torre de grades de cerveja. Grande festa ia para ali. Mas mais nada.
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As "mammas" do meu bairro estão a morrer!
Estas são as detentoras da única e verdadeira cozinha do povo de uma cidade, a que se faz no dia a dia das casas dos bairros onde já os seus pais e avós viveram.
Por vezes pensamos que a cozinha tradicional é a que vem nos livros das recolhas culinárias mais ou menos etnografadas e as receitas que os restaurantes nos oferecem com esse rótulo; é cómodo mas é mentira!
Essa é comida de museu, comida que foi e que agora se imita mas já com o espírito voyeur de estar a provar comida de uma geração que já não existe, ou, pior ainda, com o espírito de quem salva o tal património, de quem se fala na televisão.
Tudo o que não sobreviveu no dia a dia das casas, morreu.
É tão válida a sua apresentação em restaurante, como será por certo válida a exposição em jardim zoológico de um qualquer espécime que já não há na Natureza e que só subsiste à força de reprodução geneticamente assistida; melhor que nada, mas muito triste.
Quando nos aquietamos as inquietações dizendo "a minha avó, lá em cima, ainda faz" ou "a minha tia, lá no monte, ainda faz", deveríamos antes interrogarmo-nos "mas EU ainda faço?".
Já ia a chegar à caixa quando decidi voltar para trás. É desta que vou fazer os maranhos da minha querida Beira-Baixa, terra que disputa no meu coração a preferência pelo mar, ora uma, ora outro…
Lá toquei de novo a campainha do talho!
Se sei que não tenho tempo de cozinhar comida nova todos os dias, prefiro fazer em mais quantidade, guardar no frigorífico ou no congelador,e usufruir do meu próprio tempero, trabalho e produtos escolhidos! (que na sua maioria até vêm da quintinha dos papás...)
ResponderEliminarEu não consigo chegar a um supermercado e comprar comida feita... Não está no meu feitio...
Sabes o que eu acho? A solidão na velhice é tão triste que até rouba a vontade de coisas boas...
ResponderEliminarVou ficar à espera dos teus maranhos que só como feitos por uma tia do meu marido, pois não faço ideia dos segredos que eles guardam...
Beijinhos.
Confesso que a minha mãe já começa a entrar na moda de comprar tudo feito no Pingo Doce. Pessoalmente, mesmo quando vou de férias, vou ao supermercado e compro os produtos frescos para fazer as refeições quando volto da praia. Adoro cozinhar, principalmente doces.
ResponderEliminarCá em casa é presença habitual o arroz doce, a aletria, as rabanadas, as filhozes, o bolo-rei, os folares da Páscoa, e as broas de festa da terra dos meus pais com bastante canela e limão. Gosto de experimentar fazer comidas novas, e adoro a cozinha alentejana, embora ache que em Portugal não haja sítio onde não haja boa comida.
Por vezes tenho pena que a minha Mãe não mostre aos meus filhos as comidas que me fazia no forno de lenha que eu e o meu irmão tanto adorávamos. Infelizmente aprendi a cozinhar pouca coisa com a minha Mãe, e o resto foi através de livros e estudando algumas das receitas da minha sogra, que ainda mantém a tradição alentejana na sua casa.
Também eu tenho de chamar o empregado do talho e da peixaria para ser atendida, e, enquanto ouço no altifalante alguém chamar alguém ao talho e à peixaria, observo as velhotas a acotovelarem-se pelas refeições já prontas.
São os novos tempos em que vivemos, por muito que nos custe este tipo de perdas do património gatronómico. Nem só as avós se viram rendidas pela comida pronta assim como os netos e as netas deixaram de elogiar e de pedir à avó aquele bolo, aquela feijoada, aquele cozido que só a avó faz...
ResponderEliminarAcho que a culpa é um pouco de todos nós, não só dos netos mas também das avós.
Os "Pingos Doces" tem o seu espaço, todos nós é que podemos fazer algo para que eles não mandem totalmente nas nossas cozinhas.
Para isso é que este grande grupo de bloggers culinários contribuem abrindo as suas cozinhas ao mundo todos os dias, para manter (alguns) as tradições.
Espero ter lucidez para não envelhecer com essas taras.
ResponderEliminarSerá solidão? O tempo que resta é tão pouco, que não o ocupam a cozinhar?
Bom dia !
ResponderEliminarÉ com imenso prazer que acompanho as suas excelentes crónicas de bem (e mal) comer.
Fiquei a saber que também é da "região demarcada do Maranho" onde também tenho raizes (terra de meus pais).
Um abraço
saúde e boas crónicas
Antonio Silva
Catarina, Anna, Sofia, Miguel, Helena e @ntónio:
ResponderEliminarObrigado pelos vossos comentários.
Os tempos mudam e, de facto, em tanta coisa mudam para melhor. Não sou saudosista e até muitas vezes penso que teria gostado, e muito, de ter tido na minha infância a enorme possibilidade de acesso ao mundo que os putos de hoje têm.
Infelizmente, no campo gastronómico e até simplesmente alimentar as coisas não correram bem e o que se assiste é ao empobrecimento devastador dos acervos culinários reais (apesar de hoje em dia toda a gente ter uma biblioteca temática sobre o assunto!), aquilo que, na verdade, se come no dia-a-dia e que vai ficando reduzido a esteriótipos normalizados.
Veja-se, por exemplo, o que se come de um animal: dantes comia-se tudo. Posso dizer que ao longo de um ano todas as partes de um porco acabavam por figurar à mesa, um dia o lombo, outro dia o fígado.
Hoje, em muitos talhos de cidade, as vísceras desapareceram e já só aparecem as peças já desmanchadas (nada que faça recordar o bichinho vivo).
Bom, nem imaginam a aventurav que está a ser fazer os maranhos a partir do material que se arranja em Lisboa.
Eu não sou da "região demarcada do maranho", senão por adopção, já que de Idanha são os ancestrais da minha mulher e tenho lá uma casita no centro histórico, para um dia...
Curiosa, essa procura de comida no Pingo Doce. Apesar de haver comida pronta em alguns, nunca me apercebi de que tivesse grande procura. Grande procura vejo em algumas churrasqueiras e restaurantes que também fazem meia dúzia de pratos e vendem para fora. E os clientes não são só as "velhotas"...
ResponderEliminarQuanto à cozinha das famílias está cada vez mais dependente do que se consegue comprar, o que nos peixes se resume a meia dúzia de espécies de aquicultura e pouco mais, nas carnes a aves inteiras, ovinos em metades ou quartos e porcos e vacas em peças, legumes e frutas que chegam do outro lado do mundo e todos a saberem ao mesmo. Claro que complementarmente, temos toda uma panóplia de caldos, caldinhos e calduços, molhos de todas as cores e feitios e demais pirotecnia que parece feita para que as pessoas se esqueçam dos sabores dos ingredientes de base e pratiquem uma cozinha urbana confrangedoramente pobre sem o saberem.
Aliás, o recente fenómeno de divulgação e comercialização de produtos menos vulgares (como sementes de mostarda, de papoila, endro, cardamomo, vinhagres de tudo aromarizados com tudo que sempre existiram nas lojas gourmet mas que serviam apenas para preparações mais exigentes) via blogosfera atesta dessa necessidade de variar as preparações, idos que são os tempos dos "produtos de estação" e das "novidades" da horta.
E tens razão quanto a comida de Museu. A cozinha tradicional vive da capacidade de preparar o que há disponível descobrindo e afinando combinações de ingredientes e formas de preparação que se aprimoram no tempo. Se, como agora, o que temos à disposição é igual no Continente de Vila Real ou no Jumbo de Alfragide (e já agora a um qualquer ECI ou Carrefour) é fácil perceber esta formatação da cozinha, que perde qualquer referência a local ou estação do ano, tornando-se numa espécie de MacDonald' s home made.
Quanto aos maranhos, boa sorte na demanda, mas não me parece que se arranje um bucho de carneiro no Pingo Doce.
Ficamos a espera do resultado desses "Maranhos à Pingo Doce" (salvos sejam).
ResponderEliminarAssim como o respectivo "Making of".