quarta-feira, 15 de junho de 2011

Omoleta de Rins (como se fazia em Lisboa)

            Regressei há dias de Marrocos, um país pobre mas onde todos sabem a importância vital  de conceitos tão básicos como os do aproveitamento integral dos recursos, da reutilização, da reciclagem, aqui não encarada como uma atitude cívica e ambiental mas como algo de naturalmente inscrito na vida diária. 
É assustador o que, num país como Portugal, um consumismo disfarçado de prosperidade  vaidosa fez aos hábitos alimentares portugueses, hoje espampanantes e desastrosos do ponto de vista ambiental.
Ainda nos anos 60-70 do sec.XX uma carcaça bovina era integralmente aproveitada, até os ossos, sendo que apenas uma minoria mais abastada se podia aventurar em lombo, vazia ou mesmo rosbife; mas isso não era dramático, como se vê pelo uso que faz de todas as partes de um animal o nosso riquíssimo receituário popular tradicional.
Hoje, já só chega aos balcões e expositores dos talhos urbanos menos de 50% do animal abatido; o resto vai diretamente para fabrico de rações para cães e gatos e para … incineração!
Uma geração inteira que na sua infância ainda comeu alegremente tanto o músculo como as vísceras, aprendeu rapidamente a renegar esses saudáveis hábitos, encarando hoje o consumo das vísceras como vergonhoso ou demonstrativo de baixo status social. Na feira das vaidades vale tudo, até o sacrifício do nosso futuro coletivo.
Nas tascas que hoje apresentam bitoques do lombo, vazia ou alcatra, até há pouco tempo havia dobrada, mão de vaca, coração, iscas, rins, chispes, sangue, carnes de cebolada. Não havia dinheiro para mais e ainda não se inventara o crédito ao consumo!
Foi a pensar nesse abandono generalizado das vísceras animais como fonte  alimentar, pelo dia-a-dia das cozinhas familiares que as propus à Ana e ao Cupido, como tema para esta nossa 32ª Trilogia.
No Cais do Sodré existiu, entre 1905 e 1959, o Café Royal, sítio de tertúlia para os  surrealistas e antes deles, Columbano Bordalo Pinheiro, Camilo Pessanha, Gago Coutinho, entre outros.
Aí, como de resto na maioria dos cafés, tascas, retiros, casas de pasto e tabernas, imperava uma cozinha popular e adequada às magras finanças da clientela e do país.
As omoletas ainda não tinham adquirido o estatuto “vergonhoso” de prato barato do fim da lista, ao pé da alheira com ovo estrelado e que ninguém ousa pedir mesmo quando apetece, não vão os vizinhos pensar que está ali algum sem-abrigo.
As omoletas de Lisboa eram variadas e tinham a particularidade de serem recheadas “por cima”, depois de confecionadas*.
No Café Royal, era especialidade a omoleta de rins, de que aqui deixo a minha versão:

Ingredientes (por pessoa):

2-3 ovos
1 rim de porco ou 1/3 de rim de vitela
Alhos
Louro
Sal e pimenta
Vinagre

Preparação:

Se não tem experiência de arranjar rins, deixe essa tarefa para o talho. Em casa, lave-os e parta-os em fatias** muito finas com o auxílio de uma faca muito afiada.
 Tempere com sal, pimenta, alhos cortados e louro, molhe com vinagre e deixe a marinar por algumas horas ou para o dia seguinte.
Fritar os rins obedece a uma técnica precisa que resolve o problema aparentemente insolúvel de os rins não deverem ser muito cozinhados mas o seu molho sim.
Aqueça azeite ou banha numa frigideira e introduza os rins, com lume forte. Mexa.
Dentro de cerca de dois minutos, verá começar a formar-se muito líquido e que os rins passaram a cozer e já não a fritar naquele líquido. Passe então o conjunto por um passador de modo a reservar a carne fora do lume e continuar a ferver e reduzir o molho que se formou e a que adiciona agora o líquido da marinada.
 Quando este molho já quase desapareceu, está grosso como molho de iscas e recomeçou a fritar, junte de novo o rim, envolva e apague o lume.
Faça uma omoleta enrolada, abra-a por cima longitudinalmente 

e encha esta fenda com o rim e seu molho.

Se quiser pode terminar polvilhando com salsa picada.
Acompanha com batatas fritas, arroz de manteiga, grelos salteados ou simplesmente como petisco, com pão.

Notas: * Saramago, Alfredo. Cozinha de Lisboa e Seu Termo, Assírio e Alvim, Lisboa 2003.
** Também pode ser cortado em cubinhos pequenos.

7 comentários:

  1. Seduz-me e muito! Nunca comi nd deste genero!!

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  2. Rins de vaca, acho que nunca comi. Mas de porco, adoro-os assados na brasa e depois temperados com bastante alho, azeite e vinagre. Uma das peças que se pode comer no dia da matança.
    Agora que sou adulta e não crio porcos, compro os rins no talho e faço-os da mesma maneira.

    Desconhecia este tipo de recheio de omolete. Mas gostei bastante.

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  3. Este é um blog q tomo como refreencia em tudo o que é comida tradicional e antiga! Sigo-me por aqui inumeras vezes, acho que ja lhe disse o mesmo noutro post :)

    E agora que me ofereceram molejas e tubaros de porco... achei q no seu blog me "safaria" com umas receitas, mas não encontro :( Molejas encontrei no livro pantagruel, mas tubaros de porco... nem ve los!! Será que me pode ajudar??

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  4. Esta tua postagem está perfeita, como de costume...

    E a conclusão a que chegamos é que só a pobreza, ou a volta a ela, que poderá salvar as nações da perda total e por consequência nosso maltratado planeta...

    Mais uma prova de que os países ricos, que ficam por aí na maior sem cerimônia a querer dividir as responsabilidade, são os responsáveis pelo desastroso aquecimento global...

    Abraços,

    C.

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  5. Adorei este post, foi como um regresso à infância. Uma das únicas recordações culinárias que tenho do meu pai é, exactamente, omoleta de rins! Ele fazia de maneira diferente. Não sei exactamente os pormenores, mas lembro-me que não era recheada. Na verdade, nunca mais tinha ouvido falar em tal petisco, até agora com o seu post.
    Sofia

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  6. Verdinha,
    Não lhe posso ser muito útil em relação aos túbaros porque foi um assunto que nunca me interessou muito e sobre o qual há pouco escrito. Pessoalmente comi 2 ou 3 vezes, mais por tradição, nas barraquinhas de petiscos da Feira de João em Évora, feitos com ovos mexidos (uma espécie de fricassé) mas a consistência esponjosa e glandular da carne não me apraz muito, é assim um pouco como bofe cozinhado. Para fazê-los deve fritar os túbaros cortados em rodelas, deixar depois de fritos a escorrer por 2h, cortá-los então em cubinhos e voltar a fritá-los desta vez com alho picado e sal. Adiciona depois os ovos com limão como para um fricassé e volta ao lume a engrossar.
    Existe outra maneira, panados, que nunca fiz mas provei uma vez (e gostei): deve salgar por 48h os tubaros inteiros, depois cozê-los em água temperada, por 1h. Arrefecer e cortar em rodelas bem finas, cerca de 3mm, passar por ovo e pão ralado e fritar. Aqui perdem a consistencia esponjosa e como são panados e crocantes, não é mau.

    Em relação às molejas, devo adverti-la que deve tirar bem a limpo de que órgão se trata porque o termo molêja pode designar muita coisa conforme a região e às vezes a terra.
    As receitas do Pantagruel referem-se à tiróide, mas há sítios onde moleja é o pâncreas e outros em que é a gordura que envolve o intestino delgado. Claro que se for usar a receita e afinal for o pâncreas (de que se faz um torresmo), o resultado pode ser dececionante ou, pior ainda, indeterminado por falta de referencia prévia.

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  7. E quase que íamos tendo um bingo de rins se eu os tivesse emcintrado... cozinhados desta forma não conhecia, mas gosto fritos e com molho de vinho tinto.
    Agora é pensar na próxima que o Cupido já ditou...
    Beijinhos.

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