quarta-feira, 30 de maio de 2012

Chutney de Maçãs e Mel


                  Chutney é a designação anglo-saxónica para um acompanhamento sofisticado que teve origem numa infinidade de condimentos ou molhos agridoces, feitos literalmente à base de tudo e ainda hoje omnipresentes nas cozinhas do sub-continente Indiano, sendo chamados chetnim na cozinha goesa e chatni no resto da Índia.
O chutney europeu perdeu um pouco o aspecto desfeito dos seus ancestrais indianos e tornou-se num acompanhamento em conserva, feito  de frutos e legumes numa base agridoce de sabores muito fortes e surpreendentes e em cuja confecção podemos deixar voar a nossa criatividade, um pouco como o enólogo que imagina um vinho enquanto o desenha através da escolha das castas e de todo o processo que se seguirá, até ao nascimento do novo néctar.
Quando num dos posts de abertura deste blog, há já cerca de quatro anos, vos falei pela primeira vez deste tema (Chutney de pimentos e ananás), disse-vos, falando das virtualidades do envelhecimento de um chutney: “Pelo contrário, se na verdade nada se passa aos 2 a 3 meses, se deixar passar sobre um chutney o número necessário de anos (conserve ao abrigo da luz se o frasco for claro), obterá algo de indescritível, talvez só comparável a um vinho excelente que se teve a paciência e usura de deixar envelhecer.”
Tenho ainda dois pequenos boiões desse chutney de 2008 e o último que abri, por altura do Natal de 2011, estava esplendoroso.
Hoje farei um chutney de maçã, já que é o tema desta 82ª Trilogia com a Ana e o Amândio, que irá engrossar as fileiras dos diversos chutneys que tenho a envelhecer e  penso abrir este lá para o Outono, talvez com uma vitela assada, talvez com umas codornizes estufadas, talvez com…


Ingredientes:

2 maçãs Reineta
6 maçãs Granny Smith
1 nabo grande
2 cebolas
3 dentes de alho
1 pimento vermelho
1 pimento verde
1 tomate maduro mas firme
1 tomate verde
1 pedaço de gengibre fresco em cubinhos
200g de sultanas
1 copo de mel
1 copo de vinagre de sidra
1 copo de vinho branco
Sal marinho grosso
Pimenta preta em grão
Cravinho

Preparação:

Coza as maçãs reinetas em água, escorra-as e reduza-as a puré com um garfo. Reserve.
Corte as maçãs Granny Smith em cubos, envolva-a bem no mel, espere cerca de uma hora e leve-as ao lume no mel durante cerca de dez minutos. Escorra e reserve.
Leve ao lume o mel onde cozeu as maçãs, juntamente com o sal, pimentas, cravinhos, gengibre, sultanas, vinagre e vinho. 
Deixe reduzir até cerca de um terço do volume.
Junte então os alhos, cebola em gomos, pimentos em tiras e nabo e tomates em cubos 
e deixe cozer por cerca de dez minutos ou um pouco menos, se os pedaços estiverem pequenos..
Junte por fim o puré de maçã e a maçã cozida em cubos, 
envolva bem, deixe levantar fervura e passe imediatamente* para frascos de vidro recém-fervidos e ainda bem quentes, que deve fechar de imediato com tampas de metal ou de vidro com junta de borracha.
Nota: 
* É voz corrente nas receitas, a recomendação de deixar arrefecer o chutney antes de enfrascá-lo. Como é evidente, este mito culinário é totalmente injustificado e reduz drasticamente o tempo de conservação de um chutney que, seis meses depois estará seguramente inquinado.
Com esta operação a decorrer nos 100ºC obtém-se uma conserva que, abrigada da luz, poderá envelhecer por muitos anos, dado que se produz, na prática, um fecho estéril e a vácuo.

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Pasta de Fígado com Cogumelos e Coentros

                         Pode fazer-se com qualquer tipo de fígado, embora eu tenha uma especial predilecção pelas pastas feitas a partir de fígados de ave. Neste caso foi feita com fígados de peru, depois de ver gorada a minha primeira intenção que foi fazê-la com fígados de pato. 
Mas foi impossível arranjá-los e os de peru, que são baratíssimos e abundantes, cumpriram na perfeição o objectivo de obter uma pasta deliciosa, que tanto pode figurar numa entrada como ser lanche, ceia ou simplesmente petisco, desses sem hora nem ocasião mais apropriada que o momento em que o desejamos.

Ingredientes:

750g de fígado
400g de cogumelos
75g de banha de porco
75g de banha de ave*
2 cebolas
2 dentes de alho
1 folha de louro
Pimenta preta
Noz moscada
Coentros
Sal
2dl de vinho generoso (Porto, Madeira, etc.) ou 1dl de Cognac, Rum, etc.
1 colher de sopa de açúcar mascavado (se usar um vinho seco)
1 pacote de gelatina neutra
.
Preparação:
.
Faça um refogado leve com a cebola, noz moscada, alhos e louro, nas banhas*.


Quando a cebola esteja translúcida mas não frita, adicione os fígados e os cogumelos, tempere com sal, pimenta moída na altura e cozinhe em lume forte por alguns minutos.


Passe tudo pela máquina de picar, com os coentros.


Aqueça o vinho escolhido sem deixar que ferva e dissolva neste vinho quente a gelatina. Misture com o picado, ponha numa forma previamente untada de banha e leve ao frigorífico de um dia para o outro.

Passe a forma por água bem quente por uns segundos antes de desenformar 

e conserve o seu paté no frio**

Notas:
* A banha de aves, tradicionalmente preparada com gordura de pato, pode ser feita com as gorduras de qualquer ave e é muito útil nos pratos à base de aves, harmonizando na perfeição os refogados prévios com o delicado sabor da carne. Para obtê-la, junte peles e gorduras provenientes do amanho da ave (frango, pato, galinha, etc.) e leve-as numa tigela ao micro-ondas, até que estejam transformadas num torresmo e tenham largado toda a sua gordura, que vai recolhendo e conservando no frigorífico.
** Estas pastas não devem ser congeladas, pois a congelação altera a estrutura molecular da gelatina.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Pirâmides de Chocolate


                       As pirâmides de chocolate são, como os outros bolos que reciclam bolos antigos, uma espécie em desaparecimento. Como elas estão as rochas, as broas de mel e até, por vezes, os salames de chocolate, embora neste último caso haja outras saídas para além da reciclagem.
A legislação dificulta muito a feitura destes bolos que usam outros bolos duros e apenas recorrendo a um truque*, nem sempre fácil de praticar no dia a dia, se pode evitar a fúria sanitária da todo-poderosa ASAE.
Eu tenho com o chocolate uma relação bastante ambivalente, que vai facilmente da adoração ao ódio e confesso que bolos que levem chocolate não são o meu cup of tea, nem por sombras. Mas é importante abordar este aspecto da reciclagem alimentar e, pegando numa sugestão que há tempos um amigo me fez, já não sei se aqui se no Facebook, decidi experimentar umas pirâmides, feitas a partir de um bolo lêvedo que fiz para o efeito, 
já que sobras de bolos são coisas que por aqui não existem.

Ingredientes:

350g de bolos duros, farinados
1 ovo
100g de açúcar
75g de manteiga fundida
2 colheres de sopa bem cheias de cacau puro
Cidrão ou fruta cristalizada a gosto
Vinho generoso
Cobertura de chocolate

Preparação:

Deixe endurecer por completo bolos ou bolachas sem creme, ou, leve-os a secar em forno baixo 
e farine-os no mixer.
Pique cidrão e ponha-o a macerar coberto por um vinho doce, como Porto ou Madeira. Se não arranjar cidrão, tarefa cada vez mais difícil com a única fábrica que o fazia regularmente agora fechada, use outra fruta cristalizada como casca de laranja, de limão
ou de tangerina.
Leve o açúcar ao lume com um pouco de água, apenas o suficiente para fazer uma calda e misture com todos os outros ingredientes excepto a farinha de bolos.
Vá então juntando farinha de bolos (ou bolacha Maria farinada, na falta), 
amassando até obter uma massa homogénea. 
Ponha a refrescar no frigorífico.
Molde umas pirâmides (na verdade são cones) 
e verta sobre eles colheradas de chocolate fundido com um pouco de manteiga ou natas.
Tradicionalmente leva no topo um pouco de chantilly e uma cereja em calda, mas como estava a fazer seis unidades e iriam durar por vários dias, decorei o topo com chocolate branco.
Nota:
A lei impede que se guardem nas instalações comerciais ou fabris restos alimentares confeccionados, como o caso dos bolos frescos, de um dia para o outro.
O truque é, ao fim do dia, secar os restos no forno e fariná-los logo. 
Se estiver transformado em farinha de bolo, passa a ser considerado uma matéria-prima e passa a estar dentro da lei. 

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Farinheira Amiga do Coração

                      Diz-se que tudo o que é bom e sabe bem, por força terá que fazer mal. Claro que há muitos casos em que o aforismo não se aplicará, mas decerto que os sabores mais voluptuosos correspondem na maioria àquilo a que médicos e nutricionistas chamam “venenos” alimentares.
De entre os sabores mais ricos dos nossos contentamento e desgraça, encontra-se esse enchido mítico e único, a farinheira. 
Chamei-lhe único porque não há nada que se lhe compare fora de Portugal. Cada enchido é de algum modo único nalguma particularidade mas de facto, se pensarmos em chouriços, paios, morcelas, salpicões, salames, temos uma infinidade por esse mundo fora, cada um adaptado ao gosto e história de cada cultura. 
Originais, só mesmo as alheiras e claro, as farinheiras.
As farinheiras são, simultaneamente, um monumento de sabor e uma enormidade alimentar, já que, com esta ou aquela pequena variação quanto à inclusão de algum pedacito de carne, uma farinheira é farinha temperada e ensopada em gordura de porco, um enchido de faz-de-conta, o peixinho da horta dos enchidos, nascida para fazer parecer chouriço o que só tinha tripas, gordura e  farinha.
E que boas que elas são, tentação irresistível seja num cozido, com ovos, assada, frita, cozida, numa feijoada ou a rechear lulas ou carne, indicação recente da autoria de Sobral.
Foi a pensar no mal que fazem à saúde e à consciência, que decidi criar uma farinheira sem pecado, entendendo-se aqui pecado pelo seu ingrediente malsão, a gordura de porco, substituindo-a por outra saudável, poderia ter sido azeite mas para ser algo realmente nunca feito (eu próprio já fiz muitas vezes farinheiras e alheiras com azeite), optei pela Becel Pró-activ, essa mesma da TV, que entrou no lugar da banha para fazer estas farinheiras para comer sem remorsos dos 8 aos 88, que irão figurar nesta 81ª Trilogia com a Ana e o Amândio, precisamente com o tema “farinheira” e que me levou a improvisar um fumeiro em plena capital (ai o que eu vou ouvir na reunião do condomínio, que isto do cheiro a fumeiro entranha-se, entranha-se…).
Ficaram maravilhosas, não só pelo sabor mas por proporcionarem essa estranha sensação de poder dizer: “ora vamos lá comer mais uma rodela de farinheira para reduzir o colesterol!”

Ingredientes:

Farinha de trigo 650 (4/5 da farinha)
Farinha de milho (1/5 da farinha)
Sal
Alhos
Pimenta
Pimentão doce em pó
Massa de pimentão
Massa de malagueta
Sumo de laranja (ou água)
Becel Pró-activ (ou azeite, ou banha)
Tripa fresca ou seca

Preparação:

Misture todos os ingredientes excepto a tripa, que, depois de bem esfregada com sal grosso, deve deixar numa salmoura com sumo de limão desde a véspera.
As quantidades relativas são as de bom senso e conforme o resultado pretendido; se quiser que fiquem mais picantes, carregue na malagueta, se houver problemas de hipertensão pode usar sal para hipertensos, mais ou menos pimentão doce consoante as quiser mais vermelhas ou mais acastanhadas, etc. 
A gordura que usar, contudo, deve representar entre 1/3 e metade do peso das farinhas.
Tendo obtido uma massa homogénea, use-a para encher a tripa. 
Se usar tripa de vaca ou grossa de porco, ou ainda da seca, faça as características farinheiras dobradas nortenhas, deixando tripa vazia de modo a que não rebentem ao cozinhar. 
Se usar tripa fresca de porco do intestino delgado (chamada tripa fina), faça então as argolas como se fazem no Alentejo; estas últimas ficam prontas muito mais depressa.
A fase crucial de qualquer enchido é o fumeiro e, se para quem viva em ambiente rural isso seja coisa sem mistério, de todos os dias, já para quem viva na cidade ou em ambiente urbano, isso pode constituir um verdadeiro bicho-de-sete-cabeças.
Há muitos mitos à volta da ideia de fumeiro, o primeiro dos quais será por certo a ideia da operação envolver fumo, quando na realidade os gases envolvidos são invisíveis e o fumo visível (na verdade fuligem) é até sinónimo de um mau fumeiro.
Faz-se um fumeiro acendendo um lume de brasas e, quando estas estiverem bem acesas, sem qualquer chama, “assar” em cima destas brasas pedaços de madeira bem seca (e não húmida, pois não se querem fumos).
Destas madeiras depende a qualidade do fumeiro bem como as diferenças entre eles. Usam-se qualquer madeira desde que não-resinosa ( carvalho, cerejeira, oliveira, loureiro, sobro, laranjeira ou limoeiro, etc.).
Para estas farinheiras, que defumei no quintal da minha casa lisboeta em conjunto com alguns chouriços, usei brasas de carvão acesas numa lata dessas de feijão cozido com o fundo perfurado, a lata dentro de um vaso de barro vazio, para ficar protegida de vento que poderia levantar chama e sobre as brasas acesas pedaços de madeira de loureiro e de limoeiro. 
Os enchidos devem ficar suficientemente afastados do calor para que não aqueçam ou cozinhem.
Enquanto os chouriços ficam prontos em 4-5 dias, já as farinheiras, mais húmidas, levam cerca de uma semana as de tripa fina (Alentejo) e cerca de duas semanas as de tripa grossa (Norte).

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Bucho da Beira Alta


                       Se em matéria de comidas há espírito que eu detesto mesmo, será certamente o das confrarias gastronómicas, com tudo o que encerram de imobilismo e cristalização museográfica de algo bem vivo e em permanente mutação como é a cozinha tradicional.
Não se pense no entanto que eu ache errado o registo e até a eventual revivificação como curiosidade histórica e cultural de pratos de antanho, do mesmo modo que se organiza um jantar de época ou um serão medieval para gáudio dos seus convivas. O que me perturba é a pretensão desses grupos supostamente etno-culturais de erigirem as suas recordações ou determinada recolha em cânone imutável, certificando pela imobilidade o que deve ser este ou aquele prato.
A comida é coisa livre e em permanente evolução e a tradição é o modo como hoje se fazem os antigos pratos, não uma cópia do que eles seriam se por algum fenómeno twilight tivessem ficado suspensos no tempo e mais ninguém os tivesse feito nos últimos cem anos.
É esta a grande confusão: achar-se que tradição e museu são a mesma  coisa, quando tradição é realmente aquilo em que o antigo se transformou na sua caminhada até nós, ao ser vivido e, neste caso, comido e sempre reinventado a cada dia.
Cozinha tradicional é aquela que, nunca esquecendo os valores deixados pelos que antes nós cozinharam, se sabe adaptar numa permanente invenção ao tempo de hoje, fazendo com que os legados permaneçam vivos a cada nova refeição nas casas portuguesas, não nas evocações históricas ou almoços de confrades.
Quando em 1981, essa grande senhora da nossa Cozinha que é Maria de Lourdes Modesto lançou a Cozinha Tradicional Portuguesa, teve o cuidado de se precaver contra esse imobilismo de naftalina das receitas mortas num livro-museu qualquer, ao escrever, logo no seu prefácio: “ Fui o mais rigorosa possível na descrição da confecção e dos ingredientes. Mas a precisão das fórmulas matemáticas não tem lugar na cozinha tradicional, em que pontifica uma salutar dose de criatividade e intuição. …/… Mas não é só do passado que se trata neste livro. As oitocentas receitas que contém estão vivas e saudáveis, como as mãos que diariamente ainda as preparam em milhares de lares portugueses, conservando a nossa tradição gastronómica e projectando-a no futuro.”.
O mesmo bucho que, na região da Guarda e segundo Maria de Lourdes Modesto, era comido apenas cozido acompanhado por batatas cozidas com pele, é hoje, trinta e dois anos depois, usado como carne para um pequeno cozido, numa magnífica demonstração de como a tradição, a verdadeira, está viva e actuante.

Ingredientes:

Bucho da Beira Alta
Toucinho salgado e/ou couratos
Alhos
Sal
Batatas
Cenouras
Nabo
Couves ou ramas dos nabos

Preparação:

O bucho da Beira Alta é feito com carnes temperadas como as das chouriças a que se adicionam algumas partes moles como cabeça, rabo e carne das costelas. Depois de três dias no tempero é ensacado em bexiga de porco e posto a secar ao fumeiro.
Para que não rebente durante a cozedura, deverá embrulhar-se num pano 
antes de ir ao lume durante cerca de uma hora e meia, juntamente com o pedaço de toucinho salgado, o courato se quiser e um ou dois dentes de alho com a casca.
Retire as carnes, prove o caldo para avaliar se deve ou não acrescentar algum sal e coza neste caldo os legumes que irão acompanhar o bucho num prato deslumbrante de sabores e texturas, 
que não deve falhar ao passar por essa bela região beirã ou, sabendo como adquirir um bucho, em sua casa.

sexta-feira, 18 de maio de 2012

A Carqueja

                Própria dos maciços graníticos frios do Norte, onde é endémica e muito abundante, ocorre um pouco por todo o país desde que o solo tenha a acidez suficiente, o que à partida exclui os calcários e os ultra-básicos.

Se tiver a oportunidade de passar por uma destas nossas belíssimas montanhas pelos meses de Maio e Junho, poderá aproveitar para fazer a sua provisão de carqueja, já que é a altura em que as suas abundantes flores amarelas tornam mais fácil a sua localização.

A carqueja para uso culinário pode ser colhida o ano inteiro, já que em cozinha só se usa a parte verde da planta, uns curiosos caules ladeados por uma estrutura em forma de fita e que parecem sempre secos e duros. 
As flores amarelas e muito amargas, usadas em medicina popular como anti-hipertensivas, nos males digestivos, na diabetes e um pouco como erva panaceia, servem no entanto para mais facilmente localizar os arbustos da planta, embora ao pé da carqueja ocorra com muita frequência o tojo 
e as giestas amarelas, todas com flores algo semelhantes aos olhos leigos, 
pelo que deve sempre orientar-se pelo aspecto sui generis e único dos caules e não das flores.
A carqueja usa-se em culinária, depois de despojada das flores, para dar um sabor silvestre a pratos que, sendo tradicionalmente confeccionados com caça, perdem grande parte da sua personalidade ao serem feitos com carne da capoeira, como o coelho manso à caçador, as perdizes, faisões e codornizes de aviário e, claro, o famoso Arroz de Carqueja, de que já vos dei conta, aqui.


Nota: * Esta carqueja ( Pterospartum tridentatum) não tem nada a ver com a planta conhecida também por carqueja, no Brasil ( Baccharis trimera), esta muito popular no combate à obesidade.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Beringela com Bacalhau

“É por tudo o que em nós corre,
que se vive e que se morre”. Sérgio Godinho

                   Todos nós, gordos ou magros, temos a correr-nos nas veias aquele colesterol a que chamamos “mau” e a que os médicos chamam LDL.
Se os valores sobem acima do recomendável, mas não tanto que justifique o uso de drogas e sabendo-se da perfeita inutilidade de cortar nos ovos e nos torresmos, resta ao comum mortal que não está para se condenar à “morte em vida” das inúteis dietas que os médicos tanto gostam de impingir, recorrer a tratamentos alternativos, sejam os da tradição da medicina popular, seja seguindo o marketing de iogurtes e outras gorduras amigas do colesterol, anunciadas na TV por algum antigo campeão hoje barrigudo.
Como não gosto de campeões barrigudos a papaguear conselhos de saúde e tento fugir, sempre que possível, às drogas químicas, opto, e com excelentes resultados, por um tratamento popular conhecido por “tratamento da beringela”*, em que se usam substâncias activas deste fruto, presentes apenas em cru e extraídas a frio.
Deste tratamento com beringelas, resulta que passam a sobejar beringelas, a que há que dar destino, o que se enquadra na perfeição no tema desta 80ª Trilogia com a Ana e o Amândio, os “aproveitamentos”.
A maioria dos portugueses nunca comeu beringela e, dos que provaram, há um bom número que a detestam.
Isto deve-se às indicações culinárias que por aí abundam e que sendo quase sempre oriundas de cozinhas estrangeiras (os nossos chefs e demais escritores culinários nunca mais aprendem a ser criativos em vez de escreverem a partir de revistas), não respeitam as singularidades do nosso gosto quanto a certas consistências, quase sempre acabando a deliciosa beringela, depois de longamente estufada, grelhada ou assada, numa massa mole e desfeita que não se sabe se havemos de comer a garfo ou a colher e, se há quem goste dela assim espapaçada, eu detesto!
Cozinhando a beringela no estilo wok chinês, obtém-se, pelo contrário, uma consistência deliciosa a lembrar a dos cogumelos, que conquista qualquer “detestador” encartado de beringela.
Hoje, para aproveitar a beringela do colesterol, deixo-vos uma receita, Beringela com Bacalhau, mas que na verdade trata do processo culinário da beringela para qualquer prato e que permite uma criatividade infinita, desde que se respeitem os primeiros passos da preparação.

Ingredientes:

Beringela
Sal e pimenta
Azeite ou óleo

Cebola
Alhos
Bacalhau
Tomate seco, em azeite

Preparação:

Passos gerais –
1º- Escolha sempre as beringelas mais duras, mais pequenas e mais afiladas, a fazer lembrar mais um pepino e menos uma pêra.
2º- Descasque a beringela e parta-as em cubos pequenos ( 1 cm de lado) ou tiras igualmente finas.
3º- Demolhe em água por pelo menos 4 horas. Isto permite que a estrutura esponjosa da beringela se sature de água e não fique a seguir empapada na gordura da fritura. Escorra bem sem a espremer.
4º- Aqueça bem uma frigideira de fundo espesso ou um wok, com óleo ou azeite e frite a beringela, salpicada de sal e pimenta, com o lume ao máximo durante cerca de um minuto ou menos, 
mexendo-a sempre e parando assim que a veja mudar de cor, de quase branco para esverdeada. 
Retire logo para um prato e reserve.

Estes primeiros quatro passos aplicam-se a qualquer prato com beringela que na verdade já está cozinhada. A partir de agora é só misturá-la no último momento com aquilo que o nosso prato for, aqui foi bacalhau lentamente cozinhado em azeite, cebola, alhos e pedacinhos de tomate seco, de conserva em azeite  tudo acompanhado por algumas quenelles de puré de batata temperado com escamas secas de tomate.

Este foi um aproveitamento que ficou uma delícia!

Notas:
*O tratamento consiste em descascar uma beringela, parti-la em fatias finas ou cubinhos pequenos e pôr tudo, beringela e casca, imersas em 1,5l de água e sumo de um limão, durante toda a noite.
De manhã, retire as cascas e deite-as fora, guarde a beringela se a quiser aproveitar para comer e beba ao longo do dia a água em que a beringela macerou.
Faça isto por 3 dias, descanse outros 3, durante 3 semanas (21 dias – 12 beringelas) e repita o tratamento semestralmente, se necessário.
Verificam-se baixas de 30 a 50 unidades no valor das lipoproteínas de baixa densidade (LDL), o “mau” colesterol, ou seja, é apropriado para valores de LDL entre 115 e 160..

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Morcela da Guarda (como se come por lá)

                       Quando se fala em enchidos feitos com pão, lembramo-nos logo das inevitáveis alheiras, que agora se fazem de tudo, até bacalhau, e esquecemo-nos que há outros enchidos de pão em Portugal, entre os quais avultam as morcelas da Guarda.
Feitas com sangue cru, pão, cebola, alhos, gordura e uma mistura sui generis de especiarias onde o sabor dominante é o dos cominhos, vão encher tripa grossa de porco ou, mais frequentemente, tripa de vaca.
Hoje muito imitadas por salsicharias industriais do Norte a Sul de Portugal, com maior ou menor êxito, continua a ser, todavia, na Guarda que se encontram os melhores exemplares destas morcelas.
Agora, devido à legislação muito apertada, a menos que se conheça ou se seja familiar de alguém que mate porco em casa e faça umas morcelas, a solução para adquiri-las passa sempre por uma empresa, já que os matadouros estão rigorosamente proibidos de dispensar sangue a particulares.
Felizmente, várias das pessoas que melhor faziam morcelas na Guarda, conseguiram manter o antigo sabor apesar de terem tido de adoptar o estatuto de pequena empresa, com práticas de higiene e boas normas de laboração com que todos ficamos  a ganhar.
Neste caso está a D. Ana Maria, que hoje vende no talho nº 11 do mercado municipal da Guarda as deliciosas morcelas que ela própria faz.
Já há anos vos tinha falado de morcelas da Guarda no forno, com pedacinhos de entrecosto; fica agora esta maneira bem beirã de as comer, que foi o que fiz e que hoje aqui deixo, lembrança grata de um almoço das belíssimas férias nortenhas dos últimos dias.

Ingredientes:

Morcela da Guarda
Alhos
Banha ou azeite
Sal
Batatas
Couves ou grelos

Preparação:

Cubra a morcela com água fria e leve ao lume moderado em recipiente destapado. 
Mal comece a querer ferver, passe o calor para mínimo e deixe, sempre destapado, cozer por 15 a 20 minutos, consoante se trate de morcelas menos ou mais grossas.
Retire a morcela da água em que cozeu e ponha nesta água, agora com sal, batatas às rodelas e couves ou grelos.
Leve então a morcela cozida a fritar em banha ou azeite, a gordura aromatizada com um ou dois dentes de alho, sempre com calor baixo para que rebente o mínimo possível, o que por vezes é tarefa bem difícil.
Na verdade quase sempre acontecerá que ocorra uma ou outra ruptura da pele, que ficará restrita se a fritura se fizer com cuidado, virando várias vezes a morcela (não retire o fio que a ata e que ajuda muito a operação de virar).
Quando estiver tostada dos dois lados, retire a morcela para um prato de serviço e passe rapidamente na gordura as batatas cozidas.
Sirva logo usando a gordura da fritura para regar batatas e couves.