Se em matéria de comidas há espírito que eu detesto
mesmo, será certamente o das confrarias gastronómicas, com tudo o que encerram
de imobilismo e cristalização museográfica de algo bem vivo e em permanente mutação
como é a cozinha tradicional.
Não se pense no entanto que eu ache errado o registo e até
a eventual revivificação como curiosidade histórica e cultural de pratos de
antanho, do mesmo modo que se organiza um jantar de época ou um serão medieval
para gáudio dos seus convivas. O que me perturba é a pretensão desses grupos
supostamente etno-culturais de erigirem as suas recordações ou determinada recolha em
cânone imutável, certificando pela imobilidade o que deve ser este ou aquele
prato.
A comida é coisa livre e em permanente evolução e a
tradição é o modo como hoje se fazem os antigos pratos, não uma cópia do que
eles seriam se por algum fenómeno twilight
tivessem ficado suspensos no tempo e mais ninguém os tivesse feito nos últimos
cem anos.
É esta a grande confusão: achar-se que tradição e museu
são a mesma coisa, quando tradição é
realmente aquilo em que o antigo se transformou na sua caminhada até nós, ao
ser vivido e, neste caso, comido e sempre reinventado a cada dia.
Cozinha tradicional é aquela que, nunca esquecendo os
valores deixados pelos que antes nós cozinharam, se sabe adaptar numa
permanente invenção ao tempo de hoje, fazendo com que os legados permaneçam
vivos a cada nova refeição nas casas portuguesas, não nas evocações históricas
ou almoços de confrades.
Quando em 1981, essa grande senhora da nossa Cozinha que é
Maria de Lourdes Modesto lançou a Cozinha Tradicional Portuguesa, teve o
cuidado de se precaver contra esse imobilismo de naftalina das receitas mortas
num livro-museu qualquer, ao escrever, logo no seu prefácio: “ Fui o mais rigorosa possível na descrição
da confecção e dos ingredientes. Mas a precisão das fórmulas matemáticas não
tem lugar na cozinha tradicional, em que pontifica uma salutar dose de
criatividade e intuição. …/… Mas não é só do passado que se trata neste livro.
As oitocentas receitas que contém estão vivas e saudáveis, como as mãos que
diariamente ainda as preparam em milhares de lares portugueses, conservando a
nossa tradição gastronómica e projectando-a no futuro.”.
O mesmo bucho que, na região da Guarda e segundo Maria de
Lourdes Modesto, era comido apenas cozido acompanhado por batatas cozidas com
pele, é hoje, trinta e dois anos depois, usado como carne para um pequeno
cozido, numa magnífica demonstração de como a tradição, a verdadeira, está viva
e actuante.
Ingredientes:
Bucho da Beira Alta
Toucinho salgado e/ou couratos
Alhos
Sal
Batatas
Cenouras
Nabo
Couves ou ramas dos nabos
Preparação:
O bucho da Beira Alta é feito com carnes temperadas como
as das chouriças a que se adicionam algumas partes moles como cabeça, rabo e
carne das costelas. Depois de três dias no tempero é ensacado em bexiga de
porco e posto a secar ao fumeiro.
Para que não rebente durante a cozedura, deverá
embrulhar-se num pano
antes de ir ao lume durante cerca de uma hora e meia,
juntamente com o pedaço de toucinho salgado, o courato se quiser e um ou dois
dentes de alho com a casca.
Retire as carnes, prove o caldo para avaliar se deve ou
não acrescentar algum sal e coza neste caldo os legumes que irão acompanhar o
bucho num prato deslumbrante de sabores e texturas,
que não deve falhar ao
passar por essa bela região beirã ou, sabendo como adquirir um bucho, em sua
casa.
Caro Luís,
ResponderEliminaraqui nos comentários que ninguém nos lê, ... onde adquire estes buchos? é da D. Ana Maria do talho nº 11?