Considerar como cozinha tradicional de
determinada região ou povo aquela oriunda das cozinhas ricas de conventos ou
dos solares senhoriais é um dos erros mais grosseiros de que enfermam as
histórias culinárias europeias em geral e a história culinária portuguesa em
particular, contrastando em absoluto com as recolhas que fazemos nas cozinhas
indígenas ou de terceiro mundo, essas sim, espelho daquilo que essa comunidade
realmente come. Já por cá, é abrir qualquer livro de culinária ou doçaria ditas
tradicionais, regionais ou populares e o que foi recolhido é, na sua esmagadora
maioria, um desfilar de cascatas de ovos, amêndoas e açúcar, quantidades
prodigiosas de carnes, peixes e fumeiros riquíssimos, esquecendo toda a culinária
do país real, pobre e rural que teria muita sorte se conseguisse comer uma
qualquer proteína animal ao Domingo, um ovo, uma rodela de salpicão ou uma
sardinha salgada e que fazia, isso sim, milagres culinários com um pouco de
unto, umas ervas, azeite e pão.
Para esta 156ª Trilogia em que eu, a Ana
e o Amândio iremos tratar o tema
"Trás-os-Montes", decidi
esquecer os miríficos pratos de uma abastança desenfreada com que por vezes nos
apresentam esta tão querida e tão distante província, pobre entre as pobres e
cujo povo granítico pouco ou nada tem a ver com Os Pastéis de Santa Clara ou os
Papos-de-Anjo de Mirandela ou sequer com postas mirandesas ou as bolas a
escorrer carnes que hoje enxameiam em feiras e certames para atrair forasteiros
a estas paragens mas que os transmontanos nunca fizeram ou comeram. Com papas e
bolos...
A Bola de Miranda que hoje aqui
trago é, pelo contrário, o retrato fiel de uma cozinha paupérrima, mesmo
miserável nos anos de fome, mas que nem assim renunciava a criar com o que havia,
muito do quase nada como aqui, a fazer uma festa com um pouco de massa de pão
"roubado" à cozedura familiar, açúcar e canela e com pouco mais se
compunha a alegria desta bola.
A bola de Miranda, depois de anos
esquecida, foi ressuscitada por esforços municipais e hoje é até objecto de
certificação apesar das cedências algo apressadas e pouco pensadas feitas a uma
lógica de industrialização¹ de todo em todo desnecessária.
Por mim, fi-la como dantes se
fazia, com massa de pão, manteiga e azeite e não me arrependi. Assim como
assim, só ia fazer uma bola e não tinha clientes à espera...
Ingredientes:
Massa de pão -
500g de farinha 65
300g de água
20g de fermento fresco
7g de sal
Bola-
750g de massa de pão
1 ovo
2 gemas
0,5dl de azeite
50g de manteiga
Farinha 65 q.b.
Açúcar e canela q.b.
Preparação:
Dissolva o sal e o fermento em
água morna e misture com a farinha. Deixe em repouso por 20 minutos². Enfarinhe
uma superfície de trabalho e as mãos, vaze a massa sobre ela, salpique de
farinha e trabalhe-a energicamente durante alguns minutos.
Tape com um pano e
deixe abrigada de correntes de ar até que tenha duplicado de volume, o que
acontece em cerca de uma hora. Está pronta a sua massa de pão.
Amoleça a manteiga sem deixar que
ferva, junte ao azeite e aos ovos
e misture tudo na massa levedada com o
auxílio de uma batedeira de massas até estar tudo bem incorporado. Junte então
a farinha que entenda necessária para que a massa ganhe corpo suficiente para
ser tendida com o rolo, mas mais mole que massa de pão. Divida a massa em várias porções pequenas que farão as várias camadas da bola e uma porção maior destinada a forrar a forma que for usar.
Deixe que estes pedaços cresçam de novo até duplicarem o seu tamanho.
Estenda o pedaço maior da massa
com o rolo e o auxílio de farinha e forre com ele uma forma previamente untada
de manteiga,
tendo o cuidado de não deixar qualquer rasgão na folha de massa o
que deixaria sair o açúcar durante a cozedura.
Deite no fundo uma camada
generosa de açúcar e polvilhe com abundante canela.
Estenda então um dos outros
pedaços de massa de modo a preencher o espaço dentro da forma forrada,volte a aplicar açúcar e canela e assim sucessivamente até esgotar todas os pedaços de massa. Torça os rebordos desta última camada junto com o forro fazendo um cordão de massa que a fecha em volta,
acabe apenas com açúcar
e leve a forno quente (180-190ºC) durante cerca de meia hora.
Retire antes da massa estar totalmente cozida, já que a Bola de Miranda é um bolo que só ganha em ficar húmido por dentro, meio mal-cozido.
Notas:
¹ Nas actuais receitas da Bola de
Miranda, mesmo as debitadas pela Câmara Municipal ou pela principal fabricante
certificada, a massa é feita sem o recurso à massa de pão prévia, sendo os
ingredientes amassados juntos de raiz e só havendo assim uma fermentação, com a
devida poupança de tempo, precioso para um negócio que vive de bolhas de
actividade em ocasiões festivas bem determinadas e raras e alguma pasmaceira no
resto do tempo. Claro que, apesar de compreensível, é inadmissível o sacrifício
do sabor original e, mais ainda, a usurpação de um nome que designa algo bem
determinado e que vem do tempo em que o tempo e não a pressa era ingrediente
presente e importante na maioria das receitas.
² Ainda relacionado com o tempo devo
realçar esta questão magna do repouso inicial das massas de pão (bem como os
repousos de massas em geral), pormenor quase sempre encarado nas cozinhas
apressadas como preciosismo dispensável e cuja falta é também quase sempre
responsável por tantos fiascos e más-vontades do cozinheiro moderno em relação
às massas em geral e às de pão em particular.