sábado, 2 de maio de 2015

Caldeirada

          A Caldeirada é o mais português dos pratos de peixe, uma relíquia preciosa da nossa identidade gastronómica galaico-portuguesa; apenas na Galiza piscatória há uma caldeirada parecida, mas a Galiza é esse querido pedaço de Espanha que mais parece Portugal.
Pela Europa fora aparecem vários guisados e sopas de pescado que são isso mesmo e apenas, guisados. Mas Caldeirada não é peixe guisado? Não!
Caldeirada é o resultado de um ritual complexo e delicado, cuja quebra inadvertida é de imediato punida pela transformação em "peixe guisado com batatas e tomate". Sem retorno.
Este é um pitéu dos deuses e um legado que temos obrigação de fazer a preceito.

Ingredientes:

Safio (Congro), postas da barriga.
Raia
"Caldeirada" ( Ruivo, Rascasso, Tamboril, Peixe Galo, Moreia, Cação, Patarroxa, etc.)
1 ou 2 Sardinhas (facultativa))
Cebolas
Tomate muito maduro (no Verão)
Polpa de Tomate
Pimento
Malagueta (facultativo)
Sal e Pimenta moída
Vinho Branco
Alhos
Louro
Ramo de Salsa
Azeite

Preparação:

O Safio e a Raia são obrigatórios. Dos outros escolha mais três ou quatro, não compre as "caldeiradas" já feitas porque são sempre logro. O peixe deve ser partido em pedaços de tamanho coerente entre si e deve permitir que todos os comensais tenham possibilidade de provar todas as variedades.
Escolha um tacho ou panela largos, de modo a evitar muitas repetições nas camadas. A caldeirada é feita de modo estratificado rigoroso; na primeira camada, forro o fundo com rodelas de cebola, grossas,
de resto esta é a única camada de cebola que uma caldeirada leva. Ponha então uma camada de rodelas de batata

e depois uma camada de peixe variado (não o safio nem a raia).
Chegou a altura de temperar: directamente sobre o peixe ponha o sal e a pimenta, a malagueta se quiser, os alhos, 1 ou 2 folhas de louro.
Sobre o peixe temperado ponha então o pimento  cortado em tiras.
Não esqueça que o pimento funciona aqui como tempero e que a moderação é essencial; aqui o sabor - rei é a peixe e a mar, não a horta! Sobre as tiras de pimento vem então o tomate. Se for no Verão e tiver tomate amadurecido naturalmente e muito maduro utilize-o com abundância, metade em pedaços grosseiros, metade passado pela varinha. Se não for Verão, use tomate em rodelas e polpa de tomate.
Neste caso acrescente um cálice de vinagre de vinho ou sumo de limão, para compensar a falta em ácido dos tomates de estufa.
A partir daqui repete rigorosamente a ordem a partir da batata: Batata,
peixe (agora a Raia e o Safio),
tempero, Pimento, Tomate.
A caldeirada perfeita tem só duas camadas de peixe. Claro que, se não coube nas anteriores e ainda tem peixe para pôr, poderá ter de fazer uma terceira camada, mas atenção, sempre respeitando os estratos, nada de peixe sobre peixe ou batata sobre batata.
A última camada de cima deve ser tomate. Se está a fazer a versão que leva a sardinha, esta é, na Caldeirada, apenas um tempero que se retira e rejeita no fim. Ponha então um ramo de Salsa e, eventualmente, a Sardinha a fechar.
Regue generosamente com Azeite Virgem e adicione 1 ou 2 copos de Vinho Branco. Depende bastante da arrumação que conseguiu dar ao tacho e da quantidade de tomate usada. De qualquer modo, o nível de líquido deve ficar uns dois dedos abaixo do nível do tomate superior.
Dê uma agitadela sóbria ao tacho, para soltar a cebola do fundo.
Tape e ponha ao lume. Após ferver conte 25 a 35 minutos com lume baixo. A batata desfaz um pouco o que só melhora o molho. Apague o lume e espere uns minutos antes de servir.
Sirva com cuidado, nada de conchas ou despachar "à cantina". A caldeirada é desconstruída e servida rigorosamente na ordem inversa em que foi feita.

Notas:

Use sal marinho não refinado (compra-se na secção de produtos naturais) ou Flor de Sal.
Por mais vermelho que se apresente, o tomate fresco fora de época não serve para este prato.

As postas fechadas do Safio são incomestíveis. No entanto o preço do peixe inteiro justifica por vezes a sua compra assim. Para aproveitar as postas fechadas, que são mais de meio peixe, congele-as ligeiramente, de modo a ficarem duras mas cortáveis, corte-as em fatias de meio centímetro, salgue muito ao de leve e frite sem qualquer revestimento, demoradamente em lume médio, para ficarem bem fritas e estaladiças. São um petisco delicioso.

3 comentários:

  1. Andava há tempos a pensar fazer uma caldeirada, era provável cair no guisado. Depois de ler este post vou fazer.
    Obrigado pela receita

    ResponderEliminar
  2. Excelente texto. Excelente caldeirada

    ResponderEliminar
  3. Caro Luís

    Permita-me divulgar a receita que herdei da minha Mãe, setubalense, varina, filha de pescadores da Murtosa:

    Caldeirada à moda da Tita

    Ingredientes
    1,5 kg de peixes variados limpos e salgados (a minha regra são 400 ou 500 g por pessoa)
    0,5 kg de tomates vermelhos maduros (no Inverno há a alternativa dos tomates pelados em lata)
    2 dentes de alho picados ou laminados
    2 cebolas grandes cortadas às rodelas
    1 kg de batatas médias cortadas em cubos ou rodelas
    2 folhas de louro
    1 dl de vinho branco
    1 pimento verde cortado em tiras
    1 molho de coentros ou salsa
    Azeite q.b.
    Sal

    Preparação
    Limpam-se os tomates para ficar sem pele e sem sementes (até costumo deixar as sementes e aquela gelatina do interior dos tomates; tiro apenas as partes mais brancas e duras do interior), cortando-os em seguida em pequenos bocados.
    Com o azeite, refogam-se os tomates, os alhos (que podem ser adicionados mais tarde porque fritam muito rapidamente), as cebolas e as folhas de louro.
    Depois do refogado pronto, colocam-se as batatas por cima e logo de seguida o peixe, o pimento e o ramo de coentros.
    Para um molho mais espesso podem-se adicionar uma ou duas rodelas de batatas picadinhas como a cebola que se irão desfazer durante a cozedura e engrossar o molho.
    Adicionar 0,2 l de água (ou muito menos ou quase nenhuma porque o peixe liberta muita água durante a cozedura) e o vinho e deixar ferver durante 15 min ou até se verificar que as batatas e o peixe estão cozidos.
    Ao lume, nunca se mexe com colher. Apenas se abana o tacho.


    Tem algumas diferenças em relação à sua - que me parece bem apetitosa -

    Julgo que tem conta no FaceBook. Pode ver fotos desta caldeirada na minha página: https://www.facebook.com/cruz.gaspar.9/media_set?set=a.472400736107614.124300.100000130747394&type=3

    Saudaçõe culinário e muito agradecido pelas sua belíssimas receitas.

    Cruz Gaspar

    ResponderEliminar

Este blog é feito por mim, a pensar em si. A sua opinião é muito importante para mim; É ainda mais importante saber que está aí!