Estas migas gatas pareceram-me álibi perfeito para
falarmos um pouco sobre essa imensa e generalizada confusão entre História da
Cozinha (ou Cozinha Histórica) e Cozinha Tradicional, conceitos que encerram em
si aspectos quase antagónicos mas que teimam em ser misturados, apesar de
imiscíveis, num amálgama infeliz que muito mal tem trazido à gastronomia
portuguesa. Dessa persistente confusão entre o que é do domínio da História, felizmente
imóvel, e o que é do domínio da Tradição, felizmente dinâmica, têm nascido
incontáveis tentativas normalizadoras de pratos que, sendo do domínio popular e
das cozinhas familiares, apresentam, a partir de uma matriz comum que as
denomina, incontáveis variantes e para os quais qualquer normalização é
forçosamente redutora e empobrecedora.
É por isso que quando falamos de cozido à
portuguesa, pastéis de bacalhau, pataniscas, meia-desfeita, peixinhos da horta,
arroz de pato ou migas gatas, estamos a falar de cozinha tradicional, cuja
principal virtualidade é precisamente o modo como a tradição do prato se foi
modificando e adaptando às pessoas e aos tempos e que, refractários a normalizações
canónicas e às chamadas receitas “fixadas”, explodem nas criatividade e
dinamismo que fazem a cozinha viva de um povo. Só dentro da minha família e na
da minha mulher, pude contar seis maneiras de fazer os pastéis de bacalhau,
todas boas e todas diferentes da receita que alguém “fixou” há anos mas que nem
por isso fixou o modo como cada um faz os seus pastéis de bacalhau, nem
tão-pouco fez com que existam pastéis de bacalhau “certos”, apenas bons ou maus.
Já na cozinha histórica, a tal que tantos teimam
em chamar “tradicional”, a questão é, precisamente, a preservação de uma
receita, a reconstituição de uma época culinária, toda uma museografia
culinária cuja principal virtualidade é precisamente o rigor e a
inflexibilidade de métodos e ingredientes, garante de que serão na boca,
exactamente aquilo que o seu nome promete: Bacalhau à Brás ou à Gomes de Sá,
Carne à Mercês, Tripas à Moda do Porto, Pudim Abade de Priscos ou Pão de Rala.
Isto é Cozinha Histórica; posso recriar a partir dela mas nunca apropriar-me dos
seus nomes!
A cozinha tradicional popular alentejana,
repositório do que se foi inventando em séculos de fome e privações, fazendo
autênticos milagres gastronómicos a partir de quase nada, teve no pão e no seu
aproveitamento a sua grande base. As açordas (sopas de pão) e as migas (massas
recozidas de pão duro e água), formam um bloco em que com pão, água, sal,
azeite, uma ou outra erva aromática, algum ovo, toucinho da salgadeira anual ou
peixe seco, quando os havia, se fizeram uma miríade de sabores simples e
poderosos que ainda hoje nos arrebatam e encantam, como estas migas gatas, que
cada família apurou a partir da sua base comum de pão, bacalhau e azeite, numa
sabedoria de texturas e sabores mais ou menos complexos mas sempre migas gatas.
Estas, feitas pela minha filha Inês a partir do que há dias viu fazer em
cozinha eborense de amigos, evoluíram segundo a história e preferências daquela
família, num ano alguém não quis o bacalhau e fez-se um ovo, noutro ano houve
quem quisesse os dois, o prato hoje vai assim, misto entre as migas gatas mais
tradicionais do Alentejo e a “miga recheada” da Beira Alta, sendo o exemplo daquilo
que é, afinal, a Cozinha Tradicional.
Ingredientes:
Pão alentejano, duro
Postas de bacalhau demolhado
Ovos
Azeite
Alhos
Sal
Preparação:
Coza postas altas de bacalhau, levando-as ao
lume em água fria
e interrompendo o processo mal a água comece a querer
borbulhar. Lamine alguns dentes de alho sobre pão alentejano cortado em fatias
e que esteja num recipiente que permita o escoamento, dentro de outro que
permita recuperar o líquido sobejante. Estrele ovos em azeite e reserve.
Retire as postas de bacalhau para uma travessa
de serviço e regue o pão com o caldo fervente,
com o sal rectificado tendo em
conta o sal que o bacalhau deixou na água. Repita com a água que escorreu, as
vezes necessárias a que o pão fique bem molhado. Passe para uma tigela, junte o
azeite onde estrelou os ovos e desfaça o pão com uma colher de pau,de modo a que fiquem ainda nítidas as côdeas.
Sirva as migas gatas com o bacalhau e o ovo
estrelado, tudo regado com um fio de azeite cru.
Porque não escreve um livro?
ResponderEliminarPorque não escreve um livro?
ResponderEliminarÉ curioso que jamais me lembraria de juntar um ovo estrelado nas migas...
ResponderEliminarAgora sobre a prosa, estou em perfeita sintonia consigo...
Bem haja
António Castro
ps. estou de acordo com o outro post