O Bife à Café é a melhor prova que a tradição é viva, dinâmica, criativa e que nas gastronomia e culinária, a História é algo que enquadra sem abafar a renovação e não há lugar para cânones e receitas imóveis, ou até há, no museu, nas reconstituições históricas, na Torre do Tombo.
Comer bifes em cafés, longe de ser uma tradição entre nós, foi, no Sec.XIX e para satisfação dos apetites estrangeirados da burguesia lisboeta, hábito importado do costume anglo-saxão de tomar refeições menos formais que as de restaurante, em cafés, clubes e bares, sendo o primeiro que ficou registado o que se comeu nos cafés de António Marrare depois imitado e recriado pelos Central do Chiado, Nicola, Martinho, Janssen, Leão de Ouro, A Brasileira e tantos outros, cada um com a sua variação, que o marketing preparava-se então para nascer.
Uma das muitas variações ao Bife à Marrare, criada por alguém que a História não registou, surgiu no Café Central do Chiado, onde está hoje a Livraria Sá da Costa, e foi a introdução de café na confeção do molho para o bife, que foi um êxito logo imitado pelos bifes da Brasileira, do Nicola e de muitos mais que, até hoje, mantêm o aromático ingrediente na receita dos seus bifes, chamem-se ou não Bife à Café.
A ignorância anda quase sempre disfarçada e de mão dada com a arrogância e desta mistura sui generis aos fundamentalismos é um passinho bem pequeno: nestas coisas há sempre um "cromo" dos que o povo chama os "ainda mais papistas que o Papa".
Para alguma pretensa crítica gastronómica deste torrão luso, que entre tiques e ciumeiras se dispensa olimpicamente de ler os maiores investigadores contemporâneos da nossa gastronomia, Quitério* e Saramago** e que, nunca tendo reparado, por alguma fraqueza do palato, que os bifes que comiam com juvenil gosto no Nicola e na Trindade tinham cafezinho, foi um crime de lesa-gastronomia (vá-se lá saber por infringir qual fundamental dogma?)!
De facto, o que nunca perceberam foi que não há nem nunca houve um bife à café, ou talvez tenha havido durante o pouco tempo em que o do Marrare foi único, mas que quando o segundo surgiu já eram dois bifes à café e depois três e quatro e…. que o bife à café não é nem tem de ser algo baseado na técnica do Marrare que, de qualquer modo, nunca se chamou "à café"!
A suposta "subversão" da receita que Olleboma publicou em 1936 (que, de resto, é a do Marrare**** e não do à café) e de Maria de Lourdes Modesto (que apenas cita um dos muitos outros bifes à café,) tornou-se o exemplo-fetiche de desrespeito pela "sacrossanta tradição", inventando, de passagem, um novo conceito, o da contaminação semântica que, aqui para nós, mais parece o paradigma da “contaminação pela palermice”!
Bifes à Café, como os chapéus, há muitos; teoricamente tantos quantos os cafés, o do Pantagruel até leva gema de ovo e molho de carne assada e não deixa de ser à café por isso!
Esta conversa amena sobre bifes à café pôs-me a salivar e, com a hora de almoço a chegar, é talvez altura para descer até à Boa-Hora e ir à minha tasca da esquina, A Toca dos Caracóis, onde se faz um bife à café honesto, com boa carne, às vezes os alhos fritos para além da conta e sempre as batatas congeladas… ou posso também comprar um belo bife cru do acém redondo, o meu preferido, e vir fazê-lo exatamente como eu gosto e aprendi com Alfredo Saramago**, nesse tratado maior que nos deixou, sobre as comidas de Lisboa, “Cozinha de Lisboa e Seu Termo”***. Com café, naturalmente!
Ingredientes:
Bife alto de vaca, de peça a seu gosto
Alho
Sal e pimenta
2 colheres de sopa de banha
2-3 colheres de sopa de natas
½ chávena (bica) de café
Preparação:
Tempere o bife (usei acém redondo que corresponde à carne que sai de uma costeleta de novilho) com pimenta e um dente de alho cortado em fatias finas.
Derreta metade da banha e, em lume forte, frite o bife dos dois lados tendo o cuidado de não o espetar durante esta operação
Retire o bife e reserve. Derreta então o resto da banha, junte a nata, sal e o café e agite a frigideira para emulsionar.
Reponha o bife no molho e volte ao lume durante o tempo adequado para que fique bem ou mal-passado, a seu gosto.
Sirva regado pelo molho e acompanhado de batatas fritas.
Notas:
*José Quitério: jornalista desde 1973, autor e coautor de vários livros de tema gastronómico, fundou a secção de gastronomia do semanário Expresso e é diretor da coleção de gastronomia da Assírio e Alvim — "Coração, Cabeça e Estômago"
**Alfredo Saramago (1938-2008): Nome cimeiro das gastronomia e culinária portuguesas, usou a sua preparação académica como historiador e mestre em Antropologia (Univ. Friburgo), e em Gastronomia (Sorbonne), para desenvolver um trabalho ímpar na recolha e enquadramento histórico da tradição e atualidade da gastronomia portuguesa, de um modo científico e sem concessões a bairrismos, regionalismos, sequer a nacionalismos. A sua obra literária é, seguramente, a mais importante disponível sobre gastronomia portuguesa histórica e contemporânea.
*** Saramago, Alfredo. Cozinha de Lisboa e Seu Termo, Assírio e Alvim, Lisboa 2003.
**** Na verdade não existe qualquer versão escrita de receita do original bife à Marrare, sendo muitas vezes aceite a versão publicada no Culinária Portuguesa, de Olleboma, em 1936. Mas o certo é que o último bife feito no Marrare aconteceu quando Olleboma tinha 14 anos ( em 1886) e é pouco provável que o tenha experimentado. Esquece-se normalmente que existe uma outra publicação anterior à de Olleboma da receita do Bife à Marrare, menos conhecida mas talvez mais importante ainda pois o autor é um técnico e não um gastrónomo e por isso sistematicamente relegado para o esquecimento pois a crítica gastronómica tem alguma raiva aos grandes técnicos e incensa a diletância. Trata-se de Manuel Ferreira e da sua obra monumental, A Cozinha Ideal, de 1933, onde existe um Bife à Marrare com diferenças substanciais em ralação ao de Olleboma, 3 anos depois. Como é fácil supor, não há qualquer hipótese de fazermos hoje uma escolha honesta sobre a autenticidade de uma (ou nenhuma) das receitas.
**** Na verdade não existe qualquer versão escrita de receita do original bife à Marrare, sendo muitas vezes aceite a versão publicada no Culinária Portuguesa, de Olleboma, em 1936. Mas o certo é que o último bife feito no Marrare aconteceu quando Olleboma tinha 14 anos ( em 1886) e é pouco provável que o tenha experimentado. Esquece-se normalmente que existe uma outra publicação anterior à de Olleboma da receita do Bife à Marrare, menos conhecida mas talvez mais importante ainda pois o autor é um técnico e não um gastrónomo e por isso sistematicamente relegado para o esquecimento pois a crítica gastronómica tem alguma raiva aos grandes técnicos e incensa a diletância. Trata-se de Manuel Ferreira e da sua obra monumental, A Cozinha Ideal, de 1933, onde existe um Bife à Marrare com diferenças substanciais em ralação ao de Olleboma, 3 anos depois. Como é fácil supor, não há qualquer hipótese de fazermos hoje uma escolha honesta sobre a autenticidade de uma (ou nenhuma) das receitas.
Esse bife ficou cá com um aspecto... e esse molho hummmm...
ResponderEliminarbj
Obrigado pelo seu esclarecimento.
ResponderEliminarAqui vai o meu comentário sobre o Bag-in-the-Box:
Há anos que tenho o privilégio de comprar vinho directamente ao produtor, no caso, um amigo e colega de longa data que, embora sendo um produtor de razoável dimensão, todos os anos reserva para os amigos o "puro da uva" sempre com a classificação de Bom a muito Bom.Por ser o "puro da uva" não leva conservantes o que implica o seu consumo de colheita a colheita.Depois de tentar todos os recipientes possíveis, garrafas tipo Borgonha com rolhas de cortiça, garrafas "cinco estrelas" com vedante de plástico tipo "carica", garrafões com rolha e vedante de plástico, depósitos de aço inoxidável com torneira "garantidamente estanques" e uma considerável quantidade de litros de vinho estragado ou passado veio, finalmente o "sétimo céu".Compram-se em qualquer cooperativa agrícola os Bag-in-Box, enchem-se tendo o cuidado de ao colocar a rolha/torneira tirar todo o ar dentro do sacon (já existe uma máquina para enchimento automático).A caixa e o saco custam mais ou menos dois euros (cinco litros).Armazena-se e consome-se sem estragar uma gota.Quando chega ao fim deita-se fora e pró ano compram-se outros.Outra questão a não desprezar é a de que o espaço de armazenamento e o tempo de enchimento é substancialmente reduzido em relação às opções "clássicas".Já agora um pormenor. Na minha terra os "artistas", poupadinhos, já inventaram um alicate que retira a rolha/torneira sem a danificar o que permite lavar o saco e reutilizar.Quanto aos grandes produtores estão, como diz, a cometer um grande erro até porque os custos de engarrafamento julgo que são menores.Aqui há tempos soube que numa garrafeira da capital se estava a vender vinho de qualidade (comprovadamente) superior de um produtor (não digo o nome) que por a máquina de engarrafar normal se ter avariado se socorreu do expediente e vendeu o produto a 1,5€ o litro em embalagens destas.Sorte para quem tem informação previligiada. Pr mim não quero outra coisa.
PS: Ver se "caço" o Amoreira da Torre.
Não muito diferentes dos meus, os teus bifes... Mas hoje, para jantar, vão sair estes com bica em vez de com Nescafé como costumo fazer...
ResponderEliminarBeijinhos.
Bife à Café ou bife com molho de (com) café?
ResponderEliminarCada vez acredito mais na segurança das receitas (bem) testadas, como acredito nas re e descontruções. Creio é para se violar uma regra tem que se conhecer bem o código todo. É ver a obra do Picasso, que teve que desenhar divinamente para se permitir fazer as suas pinturas.
E o teu bife denota grande reflexão e acima de tudo uma grande segurança na preparação.
Fernando Frazão,
ResponderEliminarPenso que gostará deste Amoreira da Torre, um exemplo de vinho de cultivo biológico, um "puro de uva" e que traz este ano o selo “Boa Compra” da Revista de Vinhos..
Encontra-o no Continente.
Cupido,
No bife à café não existem opções construtivas ou desconstrutivas pois trata-se na verdade de um bife que, para além de ser de vaca, permite toda a latitude e que é à café mais por ser lá comido que por seguir qualquer receita ancestral.
Se, ao falarmos de um Marrare , um Janssen ou um à Brasileira estamos a falar de opções específicas (as que esses cafés adotaram), já este é o que se quiser e se nesta receita optei pelo registo de Saramago, foi, para além do respeito que tenho por este vulto da nossa gastronomia, com o intuito de ilustrar o uso (difamado) do café neste bife, que alguma crítica mais pretensiosa, tem achado ser ingrediente "tolo" (mostarda está muito bem, mesmo savora, café é aldrabice...)
Mas o bife à café é hoje aquilo que o gosto de mais de um século de clientes impôs e que se come nos cafés de hoje, O Nicola, A Trindade, A Brasileira e a tasca da minha rua e não o que O Marrare fazia no Sec.XIX... é a grande diferença entre uma recolha culinária dinâmica, etnográfica e antropologicamente correta e outra, cristalizada num dado momento histórico, curiosa certamente, mas nada mais que isso.