Há dias, vasculhando sem objectivo nos baús das memórias familiares, que são os acervos de pequenas coisas que uns dos outros vamos guardando ao longo da vida, encontrei um postal ilustrado que eu próprio escrevera e enviara de Copenhaga em 1979 e no qual, pelo meio das vulgaridades que se escreviam em postais ilustrados, eu relatava abismado, que por lá, o equivalente a uma carcaça custava a enormidade de 8$00 e eu, ali com a certeza pacóvia de que qualquer carcaça só poderia custar uns tostões, estarrecia.
Isto fez-me pensar no preço do pão.
Duas conversas virtuais e rápidas com as filhas, cada uma no seu canto da Europa, confirmaram-me o que já sabia: apesar das lágrimas de crocodilo dos industriais do sector da panificação a cada cêntimo de aumento no preço das farinhas ou da energia, o pão tem um preço absurdo em Portugal.
Hoje é fácil deixar-se 5 Euros na padaria, às vezes mais e mesmo assim ainda não interiorizámos o seu preço, sendo dos alimentos que com maior frequência acaba no lixo, após um estágio de alguns dias à espera de uma tal açorda que não chega a acontecer.
Faço muitas vezes o meu pão, não tanto pensando no preço mas pelo gosto que tenho em fazê-lo e por ter, acidentalmente, sabido o escabroso pormenor da composição* do pão industrial.
Esta noite, pela primeira vez, decidi fazer contas e, surpreendi-me de novo.
Desde que descobri que, afinal, fazer pão não implicava passar pela maldição bíblica do “amassar com o suor do rosto”, que, afinal, o pão se podia fazer, delicioso, sem ser sequer preciso amassar, que as microscópicas leveduras faziam de bom grado esse trabalho por nós, fazer pão passou a ser um gesto quase automático no dia-a-dia, cinco minutos ou nem isso que me permitem o luxo do pequeno-almoço em casa, com pão quente.
Por quanto?
Pela hora do jantar, misturo cerca de 1 quilo de farinha 55** com água morna, sal e fermento natural*** que é um pouco de massa levedada que guardei do pão anterior. Esta mistura é feita rapidamente e sem amassar. Retiro então um pouco da nova massa para ser o fermento do pão de amanhã
e fica o resto a levedar dentro de uma forma levemente untada com azeite, até ter triplicado de volume, o que acontece lá para a hora de ir deitar. Ponho então a forma com a massa levedada no frigorífico e vou dormir.
Pelas 7h da manhã é só cozer no forno a 220ºC e durante 20-25 minutos. Já está feito um pão delicioso, fofo, com cerca de 1,6 Kg e que deixa por toda a casa e vizinhança o aroma inimitável do pão caseiro acabado de cozer.
Comparadas as leituras do contador da electricidade,
Fiquei a saber que cozer uma fornada de pão consome 6 kWh, ou seja (em período “vazio”), 6 x €0.078 = € 0.468, 47 cêntimos de electricidade, que somado aos €0.33, custo de um quilo de farinha tipo 55 no Lidl, dá 80 cêntimos por 1,6 Kg de pão.
Tendo em atenção que o preço médio de um quilo de pão na padaria é de cerca de €2,20, é fácil perceber quanta pena devemos ter da “miséria” do sr. padeiro.
Notas: * Em qualquer local de venda de pão é obrigatória a existência, para consulta, de fichas técnicas descritivas de cada um dos pães ali vendidos. Recomendo vivamente que se dê uma vista de olhos à composição real daquilo que ingenuamente vamos pensando ser farinha, água, sal e fermento. Pode, por exemplo, fazer um jogo: quem consegue em menos tempo descobrir a farinha no meio da composição de uma carcaça?
** A farinha tipo 55 (ou 550) é a mais vulgar em culinária e faz um pão leve e branco. Pode também usar a farinha tipo 65 (ou 650) para um pão mais firme, tipo alentejano.
*** A lei portuguesa transcreveu uma directiva comunitária que proíbe o uso de fermentos naturais no fabrico industrial de pão. À boa maneira lusa, esqueceu-se o legislador de salvaguardar todos os pães regionais que usavam este sistema, chamado de "massa velha", ao contrário dos países europeus, que não tocaram nos seus pães tradicionais. Assim, e para grande gozo das multinacionais dos fermentos, em Portugal só se pode comprar pão feito com concentrados industriais de leveduras, o chamado fermento holandês.