Apesar da simpatia, diria mesmo carinho que nutro pelos
Açores, arquipélago atlântico de que conheço quatro ilhas, devo dizer para não
faltar à verdade e mesmo sabendo como isso decerto irá magoar o bairrismo às vezes
inflamado dos meus amigos ilhéus, que não me lembro nos cinquenta e seis anos
que levo de vida, de alguma vez ter comido mais mal do que por lá, nem em
Inglaterra!
Claro que eu estou ciente de que, sendo sítio de tão rica
cozinha tradicional, esta minha afirmação é por certo de uma tremenda e
gritante injustiça, mas, excepções muito escassas, uma posta de dourado sublime
ou umas cracas que ali experimentei pela primeira vez, não chegam para
compensar aquilo a que chamaria uma cozinha, na restauração de nível médio,
boçal e descuidada, alhos queimados, bifes de atum passados (e salgados!) até à
intragabilidade, sítios onde se pedia uma salada e só havia de … cebola!
Naturalmente, parte da culpa poderia bem ser atribuída à
magreza da minha bolsa, a não chegar aos píncaros das cozinhas locais; é bem
provável que nos Açores haja restaurantes como esse “Espaço Açores” de Lisboa,
que até fica a cem metros de minha casa mas a cujos preços de ouro eu não
chego, para provar a suas putativas delícias atlânticas.
Mas algo se passa pois
o certo é que, cá, eu também não vou comer aos sítios finos das cozinhas gourmet e
de autor e, mesmo assim, tasca aqui, tasca ali, vou comendo muito a contento e
a preços bem aceitáveis, seja em Lisboa, no Porto ou até em Beja.
Apesar desta pedra no sapato quanto à restauração mediana
nos Açores, o certo é que eu sou um admirador incondicional dos produtos açorianos
a que consigo deitar a mão por cá e posso afiançar que são uma garantia segura
para o êxito de qualquer prato.
Sejam os insuperáveis lacticínios, leite, queijos, manteigas,
sejam os excelentes chás da Gorreana ou do Porto Formoso, as conservas da
Corretora ou da Santa Catarina, esta através das suas marcas ou sob uma marca
branca do Lidl (Nixe, atum em diversas apresentações)
a preço bem módico, sejam
os lombos de atum fresco embalados a vácuo e realmente excelentes, seja até o
delicioso licor de maracujá do Ezequiel.
Mas hoje queria era falar-vos dos bifes dos Açores!
Não se trata de nenhuma receita, que decerto as haverá, e
muitas, na cozinha açoriana, mas na carne propriamente dita, uma carne
deliciosa, cheia de preciosos veios gordos que fazem logo dispensar qualquer
gordura adicional na confecção e que tem chegado a alguns talhos de Lisboa,
precisamente com o nome de “Bife dos Açores”.
Oriunda quase sempre da Ilha Terceira, esta carne que vem
já desmanchada em peças do quarto traseiro destinadas a bife (acém redondo,
vazia, lombo, alcatra, pojadouro) e embaladas a vácuo, chega de avião, apenas
refrigerada como as picanhas sul-americanas e, na prática, é uma oportunidade
única para acedermos a carne quase-maturada*.
O aspecto é este,
uma carne de cor profunda, sulcada de veios cuja cor
amarelada denunciam a maturação e os extraordinários pastos sempre verdes
destas ilhas atlânticas, pode parecer à primeira vista uma carne muito
esfrangalhada e gorda demais, mas será puro engano: toda esta gordura se
derrete em sabor mal começa a cozinhar, deixando uma carne tenra e deliciosa,
pelo menos tão deliciosa como algumas das suas irmãs DOP nortenhas, barrosã**,
mirandesa, de Lafões e a menos de um terço do preço, que, convenhamos, estas
carnes continentais “dop’s” têm preços cada vez mais abomináveis.
Por aqui, uns poucos pós de pimenta e umas pedritas de sal
grosso marinho, com o calor de uma simples chapa, transformaram estes dois
“bifes dos Açores”
numa delícia memorável, apesar de estarem cortados finos
demais,
o que me fez comprar o belo naco de acém com que abre este post, em peça, e os
próximos corto eu, por segurança, já que planeio dar bom uso a esta excelente
oferta açoriana, de que vos irei falando.
Notas:
*A maturação das carnes é uma
operação que o espírito asséptico e terceiro-mundista do legislador português, proíbe!
Corresponde à aplicação moderna e
segura do velho conceito de faisandage,
e consiste em deixar que certos enzimas presentes na própria célula animal,
comecem a “digerir” algumas das proteínas de cadeia mais longa, tornando-a
tenra e libertando sabores e aromas insuspeitados na carne dita fresca.
Já Olleboma, na sua Culinária
Portuguesa, escrita nos anos 30 do sec.XX, ao falar da carne para o famoso Bife
à Marrare, preconizava “ 1 fatia de carne
de 150 gramas de pojadouro ou alcatra que tenha estado em frigorífico à temperatura
de um a quatro graus positivos durante cinco a seis dias…”.
Todos nós podemos arriscar esta
operação (eu faço-o por minha conta e risco), deixando a carne muito bem
embrulhada por alguns dias no frigorífico, mas é evidente que é um processo
arriscado por ser incontrolável o nível de contaminação microbiológica com que uma peça chega a nossa casa e por
poder, sem nos darmos conta, que se iniciem processos de putrefacção.
Os brasileiros são exímios a
maturar carne, o que também é feito na Europa civilizada; por cá, as peças
vindas apenas refrigeradas, acondicionadas a vácuo ou com atmosfera de gases
inertes, SE NÃO FOREM ABERTAS, são excelentes para serem deixadas por mais 5 a 8 dias no nosso frigorífico, na
zona mais fria, antes de consumir.
Se, no talho, pedir picanha ou
bife dos Açores que já lá esteja há uns dias, fechado nas suas embalagens
herméticas, estará a desfrutar de excelente carne maturada e segura, além de
deliciosa.
**Há dias, no talho do
supermercado Intermarché de Montalegre, lá mesmo no cimo de Portugal, ao
perguntar que carne era aquela, diz-me o homem, escandalizado, que “aqui só se
vende carne Barrosã, DOP!”. O mais espantoso é que aquela vazia de
vitela barrosã, era ali a uns incríveis 7,98€ o quilo. Ainda há sítios onde se vive muito
bem!
Aqui há uns dias comprei uns bifes (caríssimos) numa dessas embalagens com gases inertes. Ao fim de três dias, quando abri a embalagem, os bifes estavam com uma cor cinzenta, nada apetecível, mas sem cheiro a podre. Isto terá alguma coisa a ver com esse tal processo de maturação? Ou foi apenas dinheiro que deitei ao lixo?
ResponderEliminarMiguel,
ResponderEliminarA carne maturada torna-se mais escura e a gordura fica amarelada. O cheiro é apenas mais forte.
A sua carne cinzenta, acho que fez muito bem em deitá-la fora, eu faria o mesmo, apesar do velho Escoffier aconselhar deixar chegar a carne a.... verde! :-)
Caro Luís Pontes,
ResponderEliminarDesempenhando um papel de coveiro, algo que está nos meus planos próximos, pois diversos posts seus suscitaram-me algumas dúvidas, gostaria de fazer-lhe uma questão relativo ao Cabrito Frito em Vinho.
1º) Ser vinho branco é fundamental? O tinto já não será tão aconselhável?
2) Diminuindo consideravelmente a quantidade de carne, digamos 1/3 da carne que utilizou na receita, a quantidade de vinho necessária será sensivelmente 1L na mesma, visto que a carne será frita durante uma hora na mesma?
Um abraço
Jorge
caro Jorge,
ResponderEliminarO que é importante não será tanto a cor do vinho mas sim a acidez que ele vai transmitir ao prato, e aqui um branco seco (tipo BSE)fará melhor o papel do que um tinto, que vai acabar por concentrar não só a acidez como as adstringências e taninos, já que isto é na verdade uma redução levada ao extremo.
No que respeita à quantidade a utilizar (e ao tempo), tudo é apenas indicativo, não obrigatório: Menos carne implica uma frigideira mais pequena e, claro, menos vinho de cada vez. Se os alhos estiverem laminados finos , em vez de uma hora, pode ficar feito em 40m. Veja as Costeletas com Canela do post anterior, que segue um processo parecido.
Abraço
Obrigado pela resposta!
ResponderEliminarEu sei pouca coisa sobre cozinha, mas de vinhos.. nem se fala! :)