Este título aparentemente
inusitado e invertido aparece hoje como registo dessa forma peculiar que os
alentejanos têm de descrever as suas refeições.
Lembra-me os anos já distantes em
que eu, ainda pouco habituado às subtilezas deste falar cantado, perguntava aos
meus alunos, em Évora, o que tinham almoçado e ouvia sempre, atónito, desfiar
um rol de acompanhamentos, até lá aparecer, com sorte, o que eu achava na minha
lógica alfacinha que deveria ser a parte
“principal”, a carne ou peixe da refeição. O bacalhau com batatas e couves era
“batatas e couves com bacalhau”, uns carapaus fritos com arroz de tomate e
salada era “arroz de tomate com alface e carapaus fritos”, etc. Lá me habituei.
Ao que nunca me habituei foi às
usurpações dos nomes e dos seus significados, isto a propósito das “alheiras”
de bacalhau, mas disso, se quiserem, conversaremos lá mais abaixo, depois desta
belíssima refeição.
Ingredientes:
2 batatas grandes, novas
1 alheira* de bacalhau, grande (ou 2 mais pequenas)
2 ovos
Sal grosso, sal fino e pimenta
preta
Azeite
Salada a gosto ou grelos cozidos
Preparação:
Corte uma tampa a cada batata
e
leve-as a assar no micro-ondas, o que é muito rápido. Escave então cada batata
de modo a ficar com uma espessura de cerca de um centímetro toda em volta,
salpique com um pouco de sal fino e pimenta e distribua pelas batatas,
calcando, dois terços da quantidade de alheira* de bacalhau, sem a pele.
Passe um fio de azeite e reserve.
Esmague a polpa de batata que
escavou com o último terço de alheira,
faça umas quenelles com este puré e disponha à volta das batatas recheados de
alheira.
Encha o resto da cavidade com a clara de um ovo e leve a forno quente
até a clara estar coagulada e as quenelles
de puré alouradas.
Escave então uma cavidade na
clara coalhada e deposite nessa cavidade a gema do ovo.
Leve mais uns minutos
ao forno, apenas o suficiente para aquecer a gema sem a cozer
e sirva com sal
grosso e pimenta acabada de moer sobre o ovo.
Acompanhe com verde a seu gosto.
Nota: * Não gosto de usurpações e plágios em geral, sendo que me
irritam sobremodo aquelas situações em que, em vez de um autor, as vítimas são
as palavras e os seus significados. Vem isto a propósito da apropriação do
termo “alheira” para designar este delicioso enchido de bacalhau, feito como
uma alheira mas que de alheira não tem nada. Claro que não chego ao ponto de,
como alguns puristas mais exacerbados, execrar o delicioso enchido pelo facto
de não ter nome apropriado para ele e até, se quisermos ser puristas a sério,
alheira “museológica”, das tais cristãs-novas sem vestígio de porco e das suas
gorduras e tripa, até nem a mais certificada e DOP será alheira, deixando eu
aos puristas a tarefa de decidirem entre eles até que ponto pode evoluir um
enchido feito com alhos e pão e ser ainda chamado alheira. Não gosto mas sou
pragmático: podia investir raivoso
contra os moinhos de vento, inventar um nome diferente para a alheira de
bacalhau chamando-lhe “bacalheira” ou “alheilhau” o que seria apenas mais uma
parvoíce que, em última análise, serviria para que ninguém soubesse de que
estava eu a falar ou escrever. A contra-gosto, utilizo pois o que o uso vai
tornando a denominação corrente, as alheiras pela sua base de fabricação, os
“carpaccios” pela qualidade do corte e não por ser cortado a partir de bife cru
de vitela, os “Brás”disto e daquilo, mesmo com batatas de pacote e sem
bacalhau, os “peixinhos da horta” só por levarem feijão verde, os “caldos
verdes” que até são um puré com coentros, os peros que agora são todos maçãs,
os ananases do mundo a que se dá um bacoco nome brasileiro como se só nos
Açores houvesse ananases…
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