quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Cabrito Estonado como se faz em Oleiros (e fim do Outras Comidas)

             Há tempos e espaços apropriados para se começar, existir e também acabar e o Outras Comidas não é excepção. Durante cinco anos foram aqui ficando conversas à volta das comidas que constituem a minha cozinha e o modo pessoal como a encaro e pratico todos os dias. 
Hoje, aquilo que sou como cozinheiro amador e as minhas opiniões quase nunca consonantes com a mainstream politicamente correcta das cozinhas dos facilitismos, das pressas, dos espectáculos mediáticos, e da onda avassaladora de cozinheiros da moda, ficou aqui e aqui ficará online. Continuar teria de ser à custa, já não daquilo que sou mas daquilo que teria de inventar para alimentar o Outras Comidas e isso é exactamente o que não quero fazer, o meu gosto vai inteiro para a cozinha sólida e consolidada, a minha, mesmo quando cria e inova, abominando as cozinhas que vivem das surpresas, das receitas a fingir que seguir uma receita, um manual de instruções de um prato, é o mesmo que cozinhar, das degustações e dos efeitos chocantes de rei-vai-nu.
Se ao longo destes anos consegui motivar alguém, e gosto de pensar que sim, para os prazeres gastronómicos que também existem a montante dos momentos à mesa, na feitura da comida, então dou por bem empregadas estas muitas horas  que dediquei ao Outras Comidas
Neste percurso de cinco anos e quase dois milhões de visitas, em que os meus leitores, os fiéis e os acidentais que aqui foram chegando ao sabor das ondas da navegação virtual, foram essenciais para este trabalho em que sempre tentei, mais do que ter alguém a seguir as minhas receitas, conseguir que em alguém nascesse os destemor e espírito de aventura e descoberta necessários para o despertar de uma cozinha própria.

O Outras Comidas começou com uma sobremesa galega notável, a Tarta deYema e vai finalizar com um prato português notável entre os notáveis e mesmo assim quase desconhecido, o Cabrito Estonado à moda de Oleiros. Para esse desconhecimento contribui decisivamente o facto de ser um prato muito difícil de repetir, pois a sua essência é algo que viola a lei portuguesa que regula o comércio de animais mortos, em talho: é proibida a venda de animais de pêlo com a sua pele, excepto o porco e peças de caça e cabrito estonado é isso mesmo, assado com pele como os leitões e só pode ser vendido nos talhos do concelho de Oleiros. Mas é talvez o meu prato preferido entre todos os pratos da cozinha portuguesa e se o Outras Comidas foram cerca de sete centenas de pratos ou preparações que eu mesmo fiz, encerrará com um feito pela maestria de D. Maria Afonso*,
que assim o fez e eu comi, em Oleiros.

Ingredientes:

1 Cabrito de leite, vivo ou morto mas com a pele intacta
Alhos
Banha de porco
Pimenta preta
Sal

Preparação:

Mate com um golpe na jugular o cabrito, que deve ser rigorosamente de leite. Isto quer dizer que terá no máximo quarenta dias de vida e apresentará, vivo, um peso não superior a sete quilos. Deixe-o pendurado pelas pernas durante três a quatro horas de modo a que escorra bem o sangue e passe então à operação delicada de remoção de todo o pêlo, que se faz mergulhando-o rapidamente em água bem quente mas não a ferver e esfregando-o então com uma serapilheira grossa. Passe-o depois com a chama de um maçarico ou ramos a arder como se faz com os porcos, de modo a chamuscar qualquer pêlo que tenha restado.
Assim pronto o cabrito (que pode comprar preparado num talho de Oleiros), esfregue-o bem por dentro e por fora com uma pasta constituída por banha de porco, pimenta preta moída, alhos esmagados e sal. Deixe assim por duas ou três horas antes de levar a forno de lenha muito quente, assente em paus de loureiro ou, na falta, numa grelha que impeça que toque na assadeira que, por baixo, irá apenas recolher o molho que vai pingado à medida que progride o assado.
Durante o assado, vai-se constipando o bicho com borrifos de vinho branco gelado de modo a tornar a pele estaladiça, pedra de toque do cabrito estonado.
Acompanha com batatas assadas no forno, esparregado de nabiças um arroz de cabidela dos miúdos do cabrito e rodelas de laranja.
Se o for comer a Oleiros, não deixe de experimentar o vinho da casta Calum, um vinho branco cor de âmbar,
de sabor estranho e surpreendente, que apenas existe aqui sendo cultivado ao longo da Ribeira da Sertã e que não é engarrafado ou vendido fora de Oleiros.

E por aqui me fico, até já.

Nota:
Outros motivos condicionaram também esta decisão: os sessenta anos quase à porta, uma vida de mais de três décadas de excesso de peso e problemas de mobilidade, motivaram também uma mudança que teve de ser radical na minha dieta, uma reviravolta que não se compadece com muitos dos petiscos tão calóricos que fizeram o Outras Comidas mas que me permitiu passar, sem recurso a outras ajudas ou "milagres", de quase centena e meia de quilos para uns saudáveis noventa.

A cozinha que criei para este processo, os petiscos que passaram a fazer parte deste meu novo dia-a-dia bem mais leve, serão o tema do Contrapeso, blog que irá nascer em breve (ainda só tem cabeçalho) e onde contarei com a vossa presença sempre que quiserem.
* D. Maria Afonso dos Santos Silva, proprietária e cozinheira do restaurante "O Prontinho", em Oleiros, onde em minha opinião se come o melhor cabrito estonado, além de deliciosos maranhos e um "pudim alentejano" memorável (o cabrito sempre por marcação : 272682338). 


quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Sopa Caramela


               Quando hoje vemos tão densamente povoada de gentes, vilas e cidades toda a península de Setúbal, esquecemo-nos frequentemente de que ainda no Sec.XX, até à construção da primeira ponte sobre o Tejo em Lisboa, era um território semi-despovoado onde o estado tentava fazer uma colonização interna distribuindo terra e casas a quem aqui quisesse fixar-se e mesmo assim com a maioria do trabalho à mercê de movimentos migratórios sazonais de trabalhadores rurais oriundos da Beira Litoral que eram alcunhados de “caramelos de ir e vir”. Responsáveis por grande parte da colonização de áreas importantes dos concelhos de Palmela, Moita, Pinhal Novo, Pegões, Alcochete, Montijo e Barreiro, a Região Caramela, trouxeram com eles novos hábitos alimentares e baseados em alguns dos enchidos das suas terras de origem, produtos do cultivo local e muita pobreza, criaram esta variante de “sopa da panela”, chamada Sopa Caramela, que a princípio pouco diferia das nortenhas sopas de unto mas que o tempo e novas abundâncias foram enriquecendo até se tornar numa sopa/prato monumental, uma das grandes sopas portuguesas, injustamente esquecida e que é uma experiência inolvidável.
Consegue imaginar algo que lembra irresistivelmente um cozido à portuguesa, um rancho, uma sopa da pedra, uma sopa da panela, sendo todas elas sem ser nenhuma? É a Sopa Caramela!

Ingredientes:

Feijão cozido (catarino, manteiga ou vermelho)
Chouriço de carne
Farinheira
Chouriço de sangue (ou mouro)
Carnes magras de porco (perna, entrecosto…)
Carnes gordas de porco (orelha, chispe, cabeça, entremeada…)
Cebola e alhos
Cenoura
Nabo
Batata
Couve repolho
Hortelã
Massa cotovelinhos

Preparação:

Demolhe e coza o feijão e reserve. Coza as carnes em água com sal, uma cebola e alguns dentes de alho com casca.
Retire as carnes quando cozidas, coza no caldo a farinheira e o chouriço de sangue, reserve carnes e enchidos
e ponha a cozer no caldo por esta ordem, cenouras, nabo, batata, couve repolho (usei coração, a minha preferida),
por fim a massa, o feijão e um ramo de hortelã.
Desfie grosso as carnes, corte os enchidos
e sirva a sopa com as carnes e enchidos por cima,
como se usa na Região Caramela, ou misturadas na própria sopa, como eu mais gosto.
  

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Cavala Salgada à Saloia


                 As opiniões divergem sobre quais são os concelhos envolventes da cidade de Lisboa, a Norte do rio Tejo que constituem a região saloia, havendo quem a restrinja a Sintra, Oeiras e Loures, outros a fazê-la abarcar também Cascais, Amadora, Mafra até Torres Vedras e finalmente quem considere zona saloia grande parte dos férteis concelhos da Região Oeste até às Caldas da Rainha.
Seja como for o que é certo é que, através dos séculos, foi a região saloia a grande responsável pela alimentação da capital e se hoje essa importância se esbateu pelos avanços da distribuição global, a verdade é que se podem ainda encontrar traços muito fortes dessa cultura rural aqui às portas da grande cidade, mesmo em concelhos que se tornaram mais importantes como dormitórios que como hortas.
A gastronomia da região saloia tem ainda traços dessa antiga missão de criar e encaminhar para a capital as partes mais nobres de peixes e carnes, valorizando-se aqui as partes e variedades com menos valor ou apetência por parte da gente mais endinheirada da cidade. Encontram-se pratos como o sangacho de atum cozido à saloia, a maior parte da cozinha jagoz ou estas cavalas salgadas que ainda se podem encontrar às Quintas-Feiras na feira da Malveira, enganchadas neste estranho abraço salgado
e vendidas, não ao quilo como agora se faz, mas aos pares.
Cozidas e acompanhadas a preceito, comem-se aqui e também um pouco por todo o litoral a norte de Lisboa, lembram o primo rico, atum
e fazem uma refeição deliciosa por cêntimos!

Ingredientes:

Cavalas salgadas
Sal
Acompanhamentos a gosto
Azeite e vinagre

Preparação:

As cavalas saloias são vendidas evisceradas através de um golpe sui generis feito no flanco do peixe
e não na linha ventral como é hábito.
Cheias de sal grosso, recebem então uma segunda cavala encaixada dentro dela e que constitui o “par”, a unidade de venda.
Pode utilizar-se no dia da compra apenas com uns minutos de molho antes de cozer ou, muito melhor, deixá-las para um ou dois dias depois, altura em que ganham todo o seu sabor. Neste caso há que demolhá-las, duas horas por cada dia em que esteve à espera no sal, depois cozê-las juntamente com os legumes que se quiser, aqui usei cebola, batata e couve e regá-la com um bom azeite e vinagre de vinho.



domingo, 1 de dezembro de 2013

Escabeche de Bacalhau


                      Há refeições que nascem de formas totalmente inesperadas e até inusitadas, como esta que acabou por nascer ao pequeno-almoço de dia em que se foi até uma feira mensal, esta não é saloia porque na margem Sul da capital, mas o espírito desta feira em Azeitão é bem parecido, um ponto de miscigenação entre as culturas rurais, suburbanas e urbanas mesmo aqui ao pé de Lisboa e um sítio em que adoro passar a manhã dos Domingos em que fico por cá.
Não se sendo rural, fica-se de algum modo condenado a ser turista, um pouco desfasado dos códigos reinantes nestes mergulhos em culturas diferentes, mas claro que, mesmo ao turista, restam sempre duas opções: a do turista-mirone, saltitando embasbacado num mundo que lhe é estranho e de que apenas observa o pitoresco, ou o turista que se embrenha e vive até onde consegue chegar o espírito e as regras destes recantos codificados.
Chegar cedo e tomar o pequeno-almoço nestas feiras é um passo importante para a compreensão do lugar. Aqui, às oito horas da manhã já se comem sopas de feijão, bifanas, a imprescindível sopa Caramela, couratos assados, torradas no carvão e umas fabulosas postas de bacalhau albardado que, dentro do pão, fazem de um pequeno-almoço uma festa que não se esquece.
Dentro do meu pão, surgiu-me hoje esta inacreditável posta de bacalhau,
alta, suculenta mas totalmente desmesurada para um pequeno-almoço. Trouxe o que restou, e foi muito o que restou, compus este escabeche a pensar num outro de petingas que o Amândio aqui deixou há dias e que me deixou água na boca.

Ingredientes:

Bacalhau albardado (posta)
Cebola
Alhos
Louro
Sal e pimenta
Azeite
Vinagre de vinho
Batatas e azeitonas

Preparação:

Refogue a cebola e alhos em azeite bom e abundante, com louro, sal e pimenta. Junte vinagre de vinho e deite tudo sobre o bacalhau.
Sirva com batatas cozidas temperados com o azeite avinagrado do escabeche e junte azeitonas.
Delícia.