Há tempos e espaços
apropriados para se começar, existir e também acabar e o Outras Comidas não é excepção. Durante cinco anos foram aqui
ficando conversas à volta das comidas que constituem a minha cozinha e o modo
pessoal como a encaro e pratico todos os dias.
Hoje, aquilo que sou como
cozinheiro amador e as minhas opiniões quase nunca consonantes com a mainstream politicamente correcta das
cozinhas dos facilitismos, das pressas, dos espectáculos mediáticos, e da onda
avassaladora de cozinheiros da moda, ficou aqui e aqui ficará online. Continuar teria de ser à custa,
já não daquilo que sou mas daquilo que teria de inventar para alimentar o Outras Comidas e isso é exactamente o
que não quero fazer, o meu gosto vai inteiro para a cozinha sólida e
consolidada, a minha, mesmo quando cria e inova, abominando as cozinhas que
vivem das surpresas, das receitas a fingir que seguir uma receita, um manual de
instruções de um prato, é o mesmo que cozinhar, das degustações e dos efeitos
chocantes de rei-vai-nu.
Se ao longo destes anos consegui
motivar alguém, e gosto de pensar que sim, para os prazeres gastronómicos que
também existem a montante dos momentos à mesa, na feitura da comida, então dou
por bem empregadas estas muitas horas que dediquei ao Outras Comidas.
Neste percurso de cinco anos e quase dois milhões
de visitas, em que os meus leitores, os fiéis e os acidentais que aqui foram
chegando ao sabor das ondas da navegação virtual, foram essenciais para este
trabalho em que sempre tentei, mais do que ter alguém a seguir as minhas
receitas, conseguir que em alguém nascesse os destemor e espírito de aventura e
descoberta necessários para o despertar de uma cozinha própria.
O Outras Comidas começou com uma sobremesa galega notável, a Tarta deYema e vai finalizar com um prato português notável entre os notáveis e mesmo
assim quase desconhecido, o Cabrito Estonado à moda de Oleiros. Para esse
desconhecimento contribui decisivamente o facto de ser um prato muito difícil
de repetir, pois a sua essência é algo que viola a lei portuguesa
que regula o comércio de animais mortos, em talho: é proibida a venda de
animais de pêlo com a sua pele, excepto o porco e peças de caça e cabrito
estonado é isso mesmo, assado com pele como os leitões e só pode ser vendido
nos talhos do concelho de Oleiros. Mas é talvez o meu prato preferido entre
todos os pratos da cozinha portuguesa e se o Outras Comidas foram cerca de sete centenas de pratos ou
preparações que eu mesmo fiz, encerrará com um feito pela maestria de D. Maria
Afonso*,
que assim o fez e eu comi, em Oleiros.
Ingredientes:
1 Cabrito de leite, vivo ou morto
mas com a pele intacta
Alhos
Banha de porco
Pimenta preta
Sal
Preparação:
Mate com um golpe na jugular o
cabrito, que deve ser rigorosamente de leite. Isto quer dizer que terá no
máximo quarenta dias de vida e apresentará, vivo, um peso não superior a sete quilos.
Deixe-o pendurado pelas pernas durante três a quatro horas de modo a que
escorra bem o sangue e passe então à operação delicada de remoção de todo o
pêlo, que se faz mergulhando-o rapidamente em água bem quente mas não a ferver
e esfregando-o então com uma serapilheira grossa. Passe-o depois com a chama de
um maçarico ou ramos a arder como se faz com os porcos, de modo a chamuscar
qualquer pêlo que tenha restado.
Assim pronto o cabrito (que pode comprar preparado num talho de Oleiros),
esfregue-o bem por dentro e por fora com uma pasta constituída por banha de
porco, pimenta preta moída, alhos esmagados e sal. Deixe assim por duas ou três
horas antes de levar a forno de lenha muito quente, assente em paus de loureiro
ou, na falta, numa grelha que impeça que toque na assadeira que, por baixo, irá
apenas recolher o molho que vai pingado à medida que progride o assado.
Durante o assado, vai-se
constipando o bicho com borrifos de vinho branco gelado de modo a tornar a pele
estaladiça, pedra de toque do cabrito estonado.
Acompanha com batatas assadas no
forno, esparregado de nabiças um arroz de cabidela dos miúdos do cabrito e
rodelas de laranja.
Se o for comer a Oleiros, não
deixe de experimentar o vinho da casta Calum, um vinho branco cor de âmbar,
de
sabor estranho e surpreendente, que apenas existe aqui sendo cultivado ao longo
da Ribeira da Sertã e que não é engarrafado ou vendido fora de Oleiros.
E por aqui me fico, até já.
Nota:
Outros motivos condicionaram
também esta decisão: os sessenta anos quase à porta, uma vida de mais de três
décadas de excesso de peso e problemas de mobilidade, motivaram também uma
mudança que teve de ser radical na minha dieta, uma reviravolta que não se
compadece com muitos dos petiscos tão calóricos que fizeram o Outras Comidas mas que me permitiu
passar, sem recurso a outras ajudas ou "milagres", de quase centena e
meia de quilos para uns saudáveis noventa.
A cozinha que criei para este
processo, os petiscos que passaram a fazer parte deste meu novo dia-a-dia bem
mais leve, serão o tema do Contrapeso,
blog que irá nascer em breve (ainda só tem cabeçalho) e onde contarei com a vossa
presença sempre que quiserem.
* D. Maria Afonso dos Santos Silva, proprietária e cozinheira do restaurante "O Prontinho", em Oleiros, onde em minha opinião se come o melhor cabrito estonado, além de deliciosos maranhos e um "pudim alentejano" memorável (o cabrito sempre por marcação : 272682338).