Viveu até há poucos anos escondido nos fumeiros gelados de
Trás-os-Montes, no meio de outros ilustres desconhecidos, ceboleiras, chouriças
de abóbora, sangueiras, azedos, unto fumado, que quando a pobreza é muita as
inventiva e criatividade crescem e disfarçam de carne aquilo que há. No caso do
butelo, foram ossos e pouco mais o que encheu o bucho ou a bexiga do bicho, o
suficiente para o transformar na alma de um dos pratos emblemáticos da cozinha
popular histórica, tradicionalmente comido com as casulas por alturas do
Carnaval. Isto há muitos anos, já que quer butelo quer casulas chegaram a estar
virtualmente extintos por falta de procura, a par de tantos outros, dos cuscus e
de outras realidades rurais que não resistiram à desertificação do Nordeste de
Portugal. Ressuscitados a partir do interesse citadino por novidade e pelas
gastronomias perdidas e exóticas, bem como pelo esforço de sobrevivência, por
expansão de mercados, de industrias locais, é hoje possível encontrar butelos à venda bem
longe da sua área tradicional, embora a sua lógica de enchido pobre esteja
definitivamente perdida, custando um butelo que, relembro, são ossos ensacados,
mais caro que a maioria dos enchidos de… carne.
Os pratos assim ressuscitados,
apesar da tendência para serem chamados tradicionais, são na realidade
recriações históricas, assistindo-se hoje a um refazer pela mão experimentada de chefes e gastrónomos do que poderia ter sido
a sua evolução tradicional, embora neste processo se tenda para o caminho mais fácil de
enriquecimento do prato, que é por norma despojado da sua rudeza telúrica,
simples e por vezes quase estóica e embelezado ao gosto mais dado a mimos que a
asperezas dos que na realidade, hoje, os comem.
O butelo que hoje aqui vos deixo,
bem como as casulas que o acompanham, comprei-os à minha fornecedora de
enchidos daquelas paragens, D. Aida Pires, na sua banca no Mercado Municipal de
Bragança. Para a execução deste cozido, pois de um cozido se trata, optei por
uma versão equidistante entre o mais histórico (e estóico) constituído apenas
pelo butelo, por casulas e por batatas e as versões mais adaptadas, com várias
carnes, enchidos e legumes.
Saiu almoço memorável, que se prolongou por outras
refeições através de uma sopa “de panela” que, sugestão de D. Aida, constituiu
alento para arrostar com um Inverno todo de frio, neve e Trás-os-Montes.
Ingredientes:
1 Butelo
Casulas (ou cascas)
Chouriço de carne
Entrecosto
Batatas
Sal
Azeite
Preparação:
As casulas são feijões que foram
apanhados ainda verdes mas já formados e conservados por secagem assim na
vagem. Têm por isso que ser reverdecidos, o que se faz demolhando-os em água
fria por doze horas, normalmente da noite para o dia seguinte.
O butelo é este grande enchido de
aspecto bizarro, todo marcado pelos ossos que contém,
pesa entre 800g e 1,3kg e coze
por cerca de uma hora e meia, duas horas se for dos muito grandes, em água,
juntamente com as carnes previamente salgadas e o chouriço. As casulas, também chamadas cascas,
depois de demolhadas cozem em tempos muito variáveis consoante a variedade de
feijão usado, o melhor é mesmo ir provando e poderá contar com um mínimo de
quarenta e cinco minutos e um máximo de hora e meia.
Em relação ao recipiente a
usar, as opiniões dividem-se, aliás como para os outros cozidos: de um lado os
que acham que se deve cozer cada ingrediente (ou pelo menos cada grupo)
separadamente, do outro os que gostam mesmo é da miscigenação de sabores entre
as carnes e os vegetais, uns a temperarem os outros. Como em tudo o que se
relaciona com comida e culinária, eu sou dos que acha que a melhor maneira de
fazer seja o que for é aquela que faz a comida como nós mais gostamos dela e
que bem tolo é quem come pelo gosto de outros. Eu gosto mesmo dos sabores
misturados num cozido e neste foi o que fiz; esta posição não é melhor nem pior
do que qualquer outra, é apenas o meu gosto, que é quem manda na comida que se
destina a ser comida por mim. Faça o leitor como o seu gosto lhe pedir.
Cozi portanto o butelo, o
entrecosto e o chouriço durante uma hora, após o que juntei as batatas por mais
vinte e cinco minutos. Tinha cozido previamente as casulas porque não sabia ao
certo quanto tempo demorariam e juntei-as ao cozido só no fim, fervinhando mais
cinco minutos em conjunto para partilharem sabores e aromas entre si. Estava
pronto o Butelo com Casulas
que deu este prato memorável, a
pedir um fio do excelente azeite transmontano, para ser comido devagar, devagar…
Notas:
Recomendo que espere até ao fim
para rectificar o sal; quer as carnes, quer o butelo, acabam geralmente por
fornecer o sal necessário, sendo às vezes preciso juntar até um pouco mais de
água para que o caldo não fique salgado.
Por vezes usa-se juntar também uma
cebola. Não usei porque não acho que “case” bem.
A confecção deste cozido gera um
caldo espantoso, que é um crime deitar fora. Com umas folhas de couve, alguma
cenoura ou abóbora, restos desfiados das carnes que tenham sobejado e mais uma
boa fervura, fica feita uma “sopa de panela” que, com umas massas ou sobre umas
fatias de pão duro, fazem outra refeição inesquecível.
os ingredientes e o aspecto não são, na minha opinião, muito apelativos, mas o texto ultrapassa largamente essas questões " menores". gosto muito da forma saborosa como escreve. ;-)
ResponderEliminarEsta é daquelas comidas que não ficam bem na foto mas que sabem pela vida. Um ícone da cozinha do nordeste transmontano com que me deleito sempre que vou para aquelas terras. Que sorte tenho de ter uma comadre transmontana que faz essa comidinha boa no pote de ferro à lareira, em Sendim, Miranda do Douro chama-se Bulho com Cascas o aspecto é exactamente o mesmo só mudam os nomes, por lá também se misturam os sabores no mesmo tacho.
ResponderEliminarÉ bom ver o Outras comidas de regresso e poder voltar a ler a sua prosa :)
Em cheio! Não podia haver melhor regresso. Frio, lareira e feiras de fumeiro... melhor conjunto impossível. Não me importava que hoje fosse o meu almoço.
ResponderEliminarSó uma vez fiz este cozido, trouxe exactamente de Bragança o Botelo, mas a recomendação foi para não aproveitar a primeira água de cozer o Botelo, assim fiz, e acho que não perdi os sabores.
ResponderEliminarMelhor recomeço do "Outras Comidas" seria quase impossível.
Bom ano, boas comidas e boas prosas.
acastro
na procura de uma dica para uma sopa seca deparei-me com o regresso do "Outras Comidas", que agradável surpresa
ResponderEliminarUm abraço
António Carlos