Uma
leitura atenta de uma resenha editada pela Câmara Municipal de Portel, sobre
sopas alentejanas, confirma aquilo que há muito vinha intuindo pela experiência
directa de degustação das actuais sopas (açordas) : nas cozinhas popular e de
restauração, o bacalhau está a matar a infinidade de sabores simples e
poderosos que ali se encontravam e que foram construídos por séculos de fome e
pela inventiva com que estas populações lhe sobreviveram.
O bacalhau, hoje omnipresente nas açordas alentejanas,
esteve longe de ter sido ali o "fiel amigo" que foi em outras
regiões, pela simples razão de que não havia dinheiro suficiente para a sua aquisição.
O consumo de bacalhau foi assim restringido à cozinha das
casas ricas, sendo usado pelo povo apenas em ocasiões festivas excepcionais e
não constituiu assim um modelo que possa ser invocado como de uso habitual.
O consumo proteico nas famílias dos assalariados ou
contratados rurais era muito baixo e resumia-se quase sempre a subprodutos do
porco, alguma ave em dia festivo, isto para a carne, sardinhas
"amarelas" e cação seco pela parte do peixe, muitas vezes
substituídos pela inclusão de ovos nos pratos, basicamente constituídos por
vegetais de subsistência, bolota, grão-de-bico, ervas, azeite e pão, sempre o
pão.
É preciso bem mais do que recolhas etnográficas a esmo, como
aquela que vos mencionei a abrir, para se perceber o que foi essa cozinha, que
constitui para a esmagadora maioria da população alentejana rural uma
referência directa a algo que para o citadino é uma abstracção, por vezes até
enfeitada de algum romantismo tolo, mas para um alentejano rural idoso é apenas
fome. E a fome nunca foi romântica, a fome é um insulto insuportável a todos os
que por ela passaram!
Assim se explica a presença, hoje quase compulsiva, do
bacalhau, o tal símbolo de abastança, em praticamente todas as açordas
alentejanas, que à conta desse pretenso enriquecimento, perdem evidentemente na
sua espantosa diversidade original. Mesmo
para quem ainda as faça no espaço privado das suas cozinhas, na altura de
relatar ou demonstrar a receita para o estranho que a recolhe, impera a
ancestral vergonha, a recusa de invocar antigas misérias e é aí que entra,
postiço, o bacalhau!
Os "alimados" são, como o conhecido "alimado
de cação", feito hoje com o peixe fresco e dantes com a variante seca,
sopas engrossadas a farinha e feitas a partir de uma base de refogado de alhos
em azeite, temperadas depois com coentros ou poejos frescos e cujo líquido era
um qualquer caldo, proteico ou vegetal, se o houvesse, mas as mais das vezes,
água. O "alimado" é o golpe final de vinagre, essencial para que a
açorda se mantivesse segura durante as horas que passava na panela até ser
consumida a meio do dia, nalgum campo distante. Na cozinha alentejana ancestral
havia alimados de quase tudo e quando o “tudo” escasseava, alimavam-se uns
alhos e coentros e com mais uma côdea estava feita a refeição.
Este alimado de couve coração-de-boi, que descobri por acaso
(e saboreei, maravilhado) pela mão mestra de D. Rosa Máximo, lá na “minha” aldeia,
é uma das tais sopas/prato esquecidas e
que não figura em nenhuma recolha, a caminho do olvido final da
extinção. Mesmo assim já levava o inevitável bacalhau, este alimado de D. Rosa,
mas ficou a referência antiga, que foi a que usei para esta açorda espantosa,
toda ela sabor telúrico e simples a invocar no palato outras épocas ainda
recentes e de memória triste, na vida, mas que foram, ao mesmo tempo, o motor
que desencadeou uma das mais desconcertantes e poderosas cozinhas rurais
portuguesas.
Ingredientes:
Couve
Alhos
Azeite
Coentros frescos
Farinha de trigo
Ovos
Pão duro
Sal e pimenta
Água
Preparação:
Estufe couve coração de boi,
cortada em juliana, num fundo
de azeite onde estalou alguns dentes de alho.
Junte coentros picados grosseiramente,
depois um pouco de
farinha que se destina a dar corpo à sopa, mexa bem para que não haja qualquer grumo quando adicionar água. Tempere, junte um golpe de vinagre de vinho, deixe ferver até a couve estar a seu gosto e a farinha cozida
e sirva sobre fatias de pão alentejano duro, acompanhada de ovos escalfados
de modo a que a gema esteja cremosa.
Um post com informação super importante e um prato de dar água na boca.
ResponderEliminarfantástico mesmo!!
Um beijinho,
Lia
Adorei!... Ainda bem que desencantou esta relíquia.
ResponderEliminarGosto muito do seu blog, acho muito importante o registo destas receitas antigas que se encontravam nas cozinhas familiares. Esta receita fez-me lembrar um prato de bacalhau que a minha tia, agora com 83 anos, costumava fazer, e que eu adorava. Tenciono experimentar muito em breve.
ResponderEliminarDescobri hoje o seu blog quando pesquisava sobre limões em salmoura e resolvi dar uma olhadela. Parabéns.
ResponderEliminar*
Só quando fui viver para o norte ouvi falar da nossa açorda com bacalhau. Toda a vida a comi apenas com um ovo. Sinto alguma repulsa em provar pois é como se ficasse abastardada. Eu que até sou de fusões gastronómicas, cozinha de autor e afins mas há coisas que me causam estranheza e esta é uma delas.
Um bem haja.