Nisto das comidas, terreno privilegiado para as
desenfreadas volúpias da gula, pecado mortal apadroado por Belzebu, se é
verdade que existe um gosto puro, sensorial, palatal, o gosto que, provando, acolhe ou repele os
sabores, também é verdade que a seu lado corre
uma outra volúpia que, não sendo essencial ou sequer necessária para o prazer sensorial da degustação, lhe dá uma outra dimensão, esta intelectual, um mundo onde cada
sabor passa a ter uma dimensão histórica, etnológica, física e química, passa a
ter explicação! É a gastronomia, não “educadora” de gosto, como pretendem
alguns, imodestos, mas fonte de propostas, quer na descoberta de esquecidos,
quer na pura inovação e na descoberta, muitas vezes apenas por idealização, de novos sabores.
Raros são os gastrónomos/cozinheiros, bem como os
cozinheiros/gastrónomos (apesar das lamentáveis confusões que por aí grassam). Destes mundos paralelos mas não interpenetrados,
profundamente simbióticos, o gastrónomo degusta e opina sobre a comida que o
cozinheiro prepara e este, por sua vez, experimenta cultura, descobre aventuras
milenares entre tachos e panelas, goza a dimensão gastronómica da sua comida.
Por último, o hedonista, o glutão, saboreia o melhor
destes dois mundos.
Da leitura de um dos mais sérios gastrónomos portugueses
vivos, Virgílio Nogueiro Gomes,
acerca de doces conventuais, das suas origens, dos abusos actuais do marketing doceiro que vai chamando
“conventual” a doces que são apenas populares, dos critérios que há que
respeitar para se chamar conventual a um doce, veio-me a vontade de descobrir
as origens deste Doce de Ovos do
Mosteiro da Ribeira*, em Sernancelhe, um convento que, longe do fausto de
outros que, por serem mais uma espécie de hotel de damas fidalgas, só
trabalhavam com gemas, açúcar, amêndoa e produtos da cozinha da nobreza,
utilizava produtos bem mais austeros, aqui a batata, para fazer render o doce e
poupar nas gemas.
Deu-me assim gozo redobrado esta 85ª Trilogia com a Ana e
o Amândio, precisamente sob o tema
“doces conventuais” e que me permitiu esta viagem* de gastronomia histórica
que, acreditem ou não, afecta decisivamente o sabor de cada colherada.
Ingredientes:
250g de açúcar
7 gemas
2 colheres de sopa de puré de batata
Canela em pó
Preparação:
Leve o açúcar ao lume com um pouco de água e ferva até
obter ponto pérola (108ºC).
Esmague para dentro deste açúcar cerca de duas colheres de
sopa bem cheias de batata cozida.
Envolva e deixe cozer por dois ou três minutos e junte então as gemas previamente passadas por um passador de rede, para reter a película.
Envolva e deixe cozer por dois ou três minutos e junte então as gemas previamente passadas por um passador de rede, para reter a película.
"No termo de Sernancelhe, perduram num desolado
abandono os restos do antigo convento da Ribeira".
Este convento franciscano terá sido fundado em 1460 e terá
subsistido nesta forma até 1520, ano em que os frades franciscanos foram
expulsos por Dona Maria Pereira, de Sernancelhe, parente dos Condes da Feira,
que nele se instalou com as suas leigas. O convento terá assim passado dos
franciscanos para as freiras "conceicionistas" de Dona Maria Pereira,
primeira abadessa, donde lhe vem o nome de "mosteiro", pois
tradicionalmente na região se chamava convento às casas dos frades e mosteiro
às das freiras.”
(in "História de Lamego" de M. Gonçalves da
Costa)
Foi neste mosteiro hoje arruinado que, no sec. XIX, com o advento da cultura da batata em substituição da alimentação predominante de castanha, que terá sido tentada esta receita que quereria imitar os cada vez mais famosos ovos moles do convento de Jesus, em Aveiro, mas aqui sem a possibilidade de gastar as assombrosas quantidades de gemas que estes levam.
Foi neste mosteiro hoje arruinado que, no sec. XIX, com o advento da cultura da batata em substituição da alimentação predominante de castanha, que terá sido tentada esta receita que quereria imitar os cada vez mais famosos ovos moles do convento de Jesus, em Aveiro, mas aqui sem a possibilidade de gastar as assombrosas quantidades de gemas que estes levam.
Aspecto actual do Convento da Ribeira, em Sernancelhe
que rica história! que doce delicioso e interessante!
ResponderEliminarhttp://deliciasdaisa.blogspot.com.br/
Este doce vai ser feito cá em casa com a maior brevidade possível... ;) Obrigado por mais esta descoberta, Luís.
ResponderEliminarUsámos os dois batata, teve piada... Esta deve ter sido a trilogia mais gulosa, em todos os sentidos, da história da nossa tri. Para mim só tem canela a dizer chega...
ResponderEliminarGostei de saber da diferença dos nomes mosteiro e convento que me estava a dar voltinhas na cabeça, lol!
Beijinhos.
Ai como eu gosto de aqui vir!
ResponderEliminarCaro Luís Pontes,
ResponderEliminarAproveitando para agradecer mais um post, gostava de fazer-lhe mais duas questões que me atravessaram a cabeça:
- A utilização da aletria da canja turca prende-se exclusivamente com a gestão da dispensa? A minha ignorância ficou parva quando há uns minutos atrás viu que o esparguete e a aletria têm exactamente a mesma informação nutriocional!
- A segunda totalmente fora do assunto, mas com vista a melhorar o meu entendimento de todo o ciclo relacionado com a amiga, é se segue e pode recomendar algum blog relacionado com agricultura?
Votos de uma boa semana,
Jorge
Caro Jorge,
ResponderEliminarNão sou especialista em cozinha da Turquia, país que até não conheço (com muita pena minha)mas em geral a escolha de uma massa não tem a ver com gestão da despensa mas sim com opção culinária.
É normal que a informação nutricional seja igual pois ambos são feitos da mesma farinha; entre esparguete e aletria a única diferença é mesmo o .....calibre!
Não conheço blogs sobre o tema agricultura, embora siga alguns amigos nessa área, como a Herdade do Freixo do Meio, em Montemor-o-Novo que encontrará facilmente pelo nome.
Confesso que quando vi a aletria na receita, imaginei-a, tal como na sobremesa, como algo doce. Pensei então que a ideia fosse contrapor com o amargo do limão.
ResponderEliminarObrigado pela referência e atenção mais uma vez :)