A ideia generalizada de que
aquilo que comemos e a que se convencionou chamar “cozinha tradicional
portuguesa” é um património que nos acompanha enquanto povo desde tempos
imemoriais é um dos mais lamentáveis logros, que nos é vendido por uma certa
“gastronomia” que, à falta da criatividade e reinvenção de que a Gastronomia é
feita, nos impinge uma cozinha geralmente com meia dúzia de dezenas de anos (a
cozinha de infância destes gastrónomos), que tem sido perpetuada numa visão
museográfica da cozinha e que nada tem a ver com a nossa cozinha tradicional, viva,
actual e em permanente evolução .
Claro que não estou sequer a
insinuar que não é importante o conhecimento do que foram as comidas e
processos culinários dos nossos pais e avós, do mesmo modo que é importante o
conhecimento da nossa História, não para que a repitamos mas para que dela
possamos tirar ilações e sem que isso signifique andarmos vestidos como em 1920
ou que a maneira “correcta “ de viajar seja de carroça.
Apesar do que acabei de contar,
há poucas coisas mais divertidas para mim que as incursões pelas comidas de
antanho, às vezes tão estranhas, às vezes tão boas, mas sempre tão inspiradoras
de coisas novas, desde que se não encarem com aquele temor reverencial e paralisante,
aquele sentimento de culpa herética que nos impede de adaptar ao nosso gosto e
ao nosso tempo o que nos ensinam ser sacrossanto património e afinal apenas é antigo, seja
antigo de séculos, seja apenas o modo como uma comida se fazia há cinquenta
anos, quando ainda não havia revestimento anti-aderente para as panelas.
A receita que hoje vos trago para
esta 97ª Trilogia com a Ana e o Amândio, com tema “ensopado”,
foi publicada em 1680* por Domingos
Rodrigues (1637-1719), cozinheiro do Conde de Vimioso e de El-Rei D. PedroII, colhida a partir desta
edição de A Arte de Cozinha, de 1683, guardada na Biblioteca Nacional, primeiro
livro de culinária em língua portuguesa e vem de um tempo em que o que se comia
por cá não tem nada a ver, quer em processos, quer em matérias-primas, com
aquilo que é hoje a nossa cozinha.
Esta cozinha de Domingos
Rodrigues*
é anterior à de Lucas Rigaud** (1780) e representa no entanto a
passagem da cozinha quinhentista, paupérrima, para uma visão já renascentista, por cá bem atrasada, faz-se ainda sem batata, quase sem arroz, sem tomate, sem azeite, sem bacalhau,
cheia de tiques agridoces e ainda atafulhada nas especiarias dos Descobrimentos,
é no entanto sedutora e, se soubermos fazer as necessárias adaptações, pode
resultar em pratos muito bons, como esta Galinha ensopada, que começou por esta
receita,
e que eu “traduzi” assim
“Corta-se uma galinha em pedaços e põe-se a cozer em lume brando com
125g de toucinho, cheiros, sal e vinagre; quando cozidas as carnes, temperam-se
com pimenta, cravo, noz moscada, canela, açafrão e sementes de coentro secas.
Engrossa-se então o molho com 4 ovos; (se não se quiser usar ovos, faça-se um
molho de salsa) ponha-se sobre fatias de pão, regue-se com sumo de limão e
leve-se à mesa.
Pode fazer-se o mesmo com peru, pombos, frangos e cabrito.”
o que já deu para passar à
prática. .
Ingredientes:
½ Galinha gorda
75g de toucinho entremeado
Vinagre
Salsa e coentros frescos
Sal
Pimenta, cravo, noz moscada,
canela, açafrão e sementes de coentro secas
3 ovos
Sumo de limão
Fatias de pão rústico, de trigo
Preparação:
Parta a galinha em bocados
grandes, bem como o toucinho e leve-os a cozer em lume muito brando e tacho de
barro, com salsa, coentros, sal e vinagre, durante cerca de uma hora e meia.
Durante este tempo, poderá ter de acrescentar água, para que não queime.
Quando as carnes estiverem
cozidas, tempere com pimenta, cravo, noz moscada, canela, açafrão e sementes de
coentro secas
e deixe ferver mais uns minutos.
Retire e reserve as carnes,
rejeite os cheiros e engrosse o molho com os ovos batidos com sumo de limão,
mexendo sempre, como para um fricassé.
Assim que o molho engrossar (se estiver a usar tacho de barro) passe-o
de imediato para uma tigela fria, para que não continue a cozer.
Disponha as carnes sobre uma
fatia de pão e regue com o molho, ensopando-o.
* Existe uma edição de Arte de Cozinha, de Domingos Rodrigues,
feita em 1995 pela Colares Editora segundo a edição de 1693 e que ainda está
disponível aqui , uma outra feita no Brasil, aqui, e ainda a edição de 1821, aumentada, disponível na Biblioteca Nacional Online e a segunda edição (a seguida nesta receita),
igual à original de 1680, publicada em 1683 e também disponível online .
** Lucas Rigaud, Cozinheiro Moderno ou Nova Arte de Cozinha, 1780 - Biblioteca Nacional Digital.
** Lucas Rigaud, Cozinheiro Moderno ou Nova Arte de Cozinha, 1780 - Biblioteca Nacional Digital.
Que emoção: já posso dizer que sei cozinhar! Passo a explicar: quando lia a receita original no seu português "galaico-arcaico", ia traduzindo as quantidades para mim mesma e sugerindo as especiarias que o autor resumiu. Eis que vejo a versão do blogger, e que em muito pouco se afasta da minha. Parabéns a mim! (e obrigada pela receita)
ResponderEliminarE que belos e bons ensopados saíram da 97ª... parabéns a nós.
ResponderEliminarBeijo.
tivémos um ar de cozinha quase medieval :)
ResponderEliminarboa malha