Se por um lado os grandes
mitos, com tudo o que transportam de mágico, poético e improvável são
condimentos preciosos para o nosso imaginário e estrutura, pense-se por exemplo
na “bênção” de uma massa de pão, poucas coisas serão mais deprimentes que os
pequenos “tesouros” culinários míticos que, se desculpáveis enquanto segredados
da Tia Maria para a Tia Alzira, se tornam verdadeiramente execráveis quando
propalados por gente que pelos lugares proeminentes que ocupa e pela
responsabilidade que essa visibilidade acarreta, deveria acautelar os
fundamentos e veracidade do que vão debitando. Falo, evidentemente, dessa
troupe de alguns
chefs da moda que, não tendo grandes capacidades para além da sua
arte, a chamada cultura geral, bem tão escasso por aí, não se coíbem de
propalar as maiores asneiras, que na sua boca valem por lei e que na realidade
passam a constituir uns verdadeiros “
tesourinhos
deprimentes”, tema ditado pelo
Amândio
para esta
133ª Trilogia, comigo e
com a
Ana.
Quem nunca ouviu dizer que o
feijão tem de cozer sem sal? (1)
Quem nunca ouviu que os veios do
louro são tóxicos? (2)
Quem nunca asseverou que polvo cozido
com sal, fica duro? (3)
E os pés da salsa venenosos, que
até as abortadeiras usavam? (4)
E os grelos ou veios dos dentes
de alho que agora se devem tirar a todo o custo pelo mal que fazem? (5)
E os veios brancos dos pimentos,
responsáveis pela sua indegestibilidade? (6)
E a máxima pretensa-gourmet de
que se deve utilizar bom vinho para cozinhar? (7)
Esta excelente feijoada de polvo,
a que chamei de “7 Mitos” e que garanto foi perfeitamente digerida sem qualquer
ajuda e que soube pela vida, foi feita usando de propósito todos eles.
Ingredientes:
Polvo fresco
Azeite refinado
Cebola
Cenoura
Alhos com grelo
Louro com veios
Pimento com “branco”
Salsa com os pés
Vinho tinto corrente
Feijão catarino cozido com sal
Sal e pimenta
Malagueta
Couve repolho
Arroz carolino cozido
Preparação:
Congele e descongele o polvo, ou, se preferir, bata-o sem piedade com o martelo de bifes.
Demolhe bem feijão Catarino e
coza-o em água e sal. Reserve.
Num fundo de azeite refinado,
estale em lume forte a cebola picada, juntamente com cenoura, pimento, alhos,
louro, pimenta e malagueta. Quando a cebola amolecer, junte então o polvo em
troços,
envolva, cubra de vinho tinto, junte sal e deixe cozer meia hora.
Junte
então couve repolho ou lombardo e deixe continuar a ferver até o polvo estar
tenro e o líquido quase desaparecer. Junte por fim o feijão cozido, deixe
ferver por uns poucos minutos e sirva a feijoada de polvo e mitos acompanhada
de arroz cozido, se gostar.
Mitos:
(1)
– O feijão, como todas as leguminosas, não só
coze com sal, como até coze melhor com sal que sem ele.
(2) - Os
veios das folhas de louro têm a mesma composição do resto da folha, como se
percebe através do louro em pó, que é a folha inteira moída.
(3) - O polvo deve ser cozido com sal, o que
facilita a cozedura, como é feito na Galiza, os maiores técnicos na preparação
de polvos.
(4) - Os pés de salsa têm a mesma composição da
folha, apenas mais intenso no sabor e devem por isso ser sempre usados.
(5) - O grelo que existe no interior do bolbo
(dente) de alho é a planta do novo alho e concentra a alicina, pelo que é
excelente para todas as preparações em que o alho é cozinhado. Deve ser
retirado, por ser muito activo o sabor, nos casos em que o alho fica cru (aioli,
p. ex.).
(6) - A única diferença entre a parte branca
esponjosa interior de um pimento e a verde é… estética!
(7) - O que distingue um bom vinho de um vinho
corrente são pequenas e frágeis características que se perdem por completo na
fervura. A pretensão da necessidade de usar um vinho bom para cozinhar é
absurda e apenas se enquadra no conjunto de mitos gourmet com que se “enfeita” esta cozinha para mantê-la de elite.
Claro que não estou a dizer que todos os vinhos são iguais; um morangueiro
deixa a sua marca a flores, um moscatel o inconfundível traço “moscato”. A
diferença que não se nota no resultado do prato é entre um moscatel vulgar e um
moscatel excelente.
Alem dos sete
mitos apontados e quebrados nesta feijoada de polvo, fez-se ainda uso de mais um:
o que afirma a necessidade de cozinhar com azeite virgem-extra, perfeita tolice
só possível em quem ignora que a temperatura destrói imediatamente tudo aquilo
que caracteriza o azeite virgem, ou seja, os subtis sabores que derivam do
facto de ser extraído a frio. O azeite virgem destina-se a temperar no prato,
sendo o azeite refinado ideal para cozinhar a quente e desprovido de acidez.