quinta-feira, 8 de novembro de 2018

Cozido galego (e Caldo galego)

              Mais do que duma qualquer especial diversidade, os cozidos vivem de uma usura dos seus ingredientes próprios que os torna, ricos ou pobres, em pratos únicos e irrepetíveis fora do seu ambiente gastronómico e cultural a menos que se usem, sem concessões, não só o processo como os ingredientes originais.

Os cozidos, como todos os pratos da cozinha popular tradicional, não são pratos canónicos ou normalizados e todas as tentativas de redução de um cozido a uma norma ou fixação em receita resultam apenas nisso mesmo: tentativas que esbarram com a pujança de cada cozinha familiar onde cada cozinheiro ou cozinheira fazem, sem receita, o seu cozido.

Resumindo numa frase o que para aqui se foi dizendo, para fazer um Cozido Galego, ou se usam os ingredientes galegos, ou se está na Galiza.
Como geralmente acontece com os pratos dos sítios pobres, também o cozido galego é uma dessas obras-primas minimais em que do quase-nada saído da salgadeira do porco, uns chouriços, uns ingredientes da horta familiar de subsistência, se faz um dos pratos mais emblemáticos da cozinha galega.
A versão que aqui hoje se deixa é a usada na Galiza litoral, de A Guarda a A Corunha, que se diferencia do cozido da Galiza mais interior, de Ourense a Lugo, por usar os grelos de nabo ou as nabiças em vez do repolho, o que lhe confere um travo totalmente distinto.

Ingredientes:

Unto
Barriga de porco salgada
Cabeça, entremeada, entrecosto, chispe ou orelha, salgados
Galinha ou frango (facultativo)
Batatas de altitude
Grão cozido (ou feijoca)
Grelos de nabo ou nabiças
Chouriço galego

Preparação:

Demolhe o unto e as outras carnes salgadas de modo a retirar-lhes o excesso de sal. Será o único sal do cozido mas sem esta preparação será ainda demais.
Coza as carnes de porco e o unto durante uma hora.
Junte então o frango e os chouriços (1 por comensal) e deixe cozer mais meia hora.
Adicione por fim as batatas descascadas e cortadas em metades, os grelos ou nabiças e o grão previamente cozido.

Quando as batatas estiverem bem cozidas, está pronta esta maravilha da gastronomia galega.


Nota: 
O caldo onde tudo isto foi feito, com os restos dos ingredientes em pedaços, constitui por si um outro prato, o famoso Caldo Galego, que é muitas vezes apresentado como sopa e feito de propósito pela restauração. O verdadeiro Caldo Galego é, no entanto, este que sobra de um cozido.

quinta-feira, 20 de setembro de 2018

Arroz de petinga

               
         Há pratos que surgem assim, parecem vindos do nada.
Neste caso o nada de onde apareceu este arroz de petinga foi uma conversa fortuita, de mercado, que o Jorge ia fazendo (é o meu peixeiro no Mercado da Ajuda) enquanto pesava as petingas que eu lhe estava a comprar, destinadas à frigideira.
- Estão tão gordinhas este ano, até dão para assar! Olhe, já ali tenho para o meu almoço, e sabe como é que a Fátima as vai fazer? -Um arrozinho de petingas, bem malandrinho, ui, ui!
O Jorge nunca me desilude, nem no peixe nem nas dicas gastronómicas conducentes à sua utilização final, e este arroz de petingas não ia escapar à experiência. Fiz assim:

Ingredientes:

Petingas
Cebolas
Tomates bem maduros
Pimento vermelho
Alho
Louro
Azeite
Pimentão-doce fumado
Sal e pimenta
Arroz Guara* (ou Carolino)
Amido de arroz glutinoso
Salsa

Preparação:

Compre petingas que não sejam das muito pequenas e congele-as de modo a que não fiquem coladas umas às outras.

Mergulhe uma a uma, congeladas, durante 3-5 segundos em água a ferver, retire,
segure-a pela cabeça e passe ao de leve a lâmina de uma faca ou um pincel de pêlo firme de modo a retirar toda a pele e com ela as escamas.
Coe  e reserve a água em que escaldou as petingas.
Salgue as petingas assim peladas, com sal grosso abundante, durante 2-3 horas.

Retire então a cabeça e as vísceras às petingas e, com o auxílio de uma tesoura, corte toda a barriga rente à espinha de modo a retirar todas as numerosas espinhas da barriga, que são incómodas quando cozidas.

Faça um arroz* de tomate malandrinho,
com a água em que escaldou as petingas e, a meio da cozedura, introduza as petingas salgadas.

Esta introdução de um peixe tão sensível fará com que tenha de deixar de mexer o arroz o que, por melhor que seja o arroz que esteja a usar, vai afectar a libertação de amido e, logo, a cremosidade final.
Quando o arroz estiver no ponto de cozedura da sua preferência, junte um copo de água fria no qual dissolveu uma colher de chá de amido de arroz glutinoso. Agite o tacho sem mexer com colher até começar a levantar de novo fervura e sirva de imediato.
O amido fez o trabalho que o arroz teria feito se o tivesse podido mexer até ao fim e o arroz, além de delicioso, terá a cremosidade que só o arroz feito nas nossas casas consegue ter.

Notas: * Usei arroz Guara, esse arroz maravilhoso que, por um inacreditável erro de marketing, é vendido esporadicamente entre nós pelo Pingo Doce, a preço de arroz para animais. Pode usar o tradicional Carolino ou qualquer dos arrozes gomosos próprios para cozedura prolongada, Redondo, Bomba, Carnaroli, Arborio, etc.



sexta-feira, 27 de abril de 2018

Um fumeiro na cidade


                     Se visitar uma dessas “Feiras de Fumeiros” com que os grandes supermercados periodicamente nos tentam aliciar, vai encontrar uns cenários comerciais em que tudo tenta parecer rural, rústico e genuíno, umas ramagens de loureiro murcho e uns alhos, às vezes de plástico, dependurados das barraquinhas cheias de umas porcariazinhas industriais com nomes serranos e poéticos a ver se disfarçam as enormidades químicas com que são feitos e nos levam ao engano.
Nitratos, nitritos, emulsionantes, dextrose, reguladores de acidez, antioxidantes, sequestradores de água, fosfatos, corantes, é um fartar vilanagem de químicos, uns impostos pela legislação, outros impostos pela ganância do lucro dos tais industriais de produtos “caseiros”.
Neste campo têm mais sorte as gentes do Norte, onde ainda se vão fazendo algumas coisas boas embora abusivamente caras. 
No Sul, a miséria é a regra e se não conhecer uma qualquer “Dona Maria” que mate porco e ainda faça uns enchidos que lhe “dispense”, está entregue aos bichos!
Abaixo de Coimbra, chega apenas um bom toucinho fumado (bacon), a preço de ourivesaria, feito por uma empresa minhota (de Ponte de Lima). De resto encontra estas coisinhas cor-de-rosa, que se desfazem em água na frigideira em vez de se desfazerem em gordura
e que conseguem esse feito milagroso e nunca visto de, após a cura, serem mais altos do que o toucinho de que foram feitos.
Se, como eu, não gosta de comer o que lhe impingem, não conhece nenhuma “Dona Maria” e não tem dinheiro que chegue para o tal bacon de Ponte de Lima, pode fazê-los! Afinal, apenas duas gerações nos separam do tempo em que nas casas se fazia lume de chão e à falta de frigorífico, era com sal e com fumo que se conservava comida para todo o ano.
Um fumeiro não era nenhum bicho-de-sete-cabeças e continua a não o ser!
Basta um pequeno quintal ou mesmo uma varanda aberta para conseguir essa maravilha que é um fumeiro caseiro. Dois dias (um fim-de-semana!) é quanto basta para a operação de fumagem. Tem um vaso velho, dos de barro?

Material:

Vaso de barro (ou um daqueles fogareiros de assar sardinhas)
Berbequim com broca de “pedra”
Carvão vegetal
Pedaço de rede metálica de malha fina
Madeira bem seca de azinho

Confecção:

Com o auxílio de um berbequim, faça furos no fundo de um vaso de barro, de modo a permitir alimentar a combustão do carvão.

Encha o vaso até cerca de um terço da sua altura, com carvão vegetal, deite umas acendalhas e acenda.

Quando as acendalhas estiverem totalmente consumidas e o carvão aceso, deite sobre eles uns pedacinhos de madeira bem seca
de azinheira (na falta, sobreiro, oliveira, laranjeira, nunca pinho ou outra resinosa).
Cubra com uma rede metálica que se destina a que a madeira não arda com chama viva e fumegue.

Deixe um metro de distância entre o fumo e o que estiver a fumar, neste caso duas papadas de que vos falei aqui e toucinho entremeado que já foi temperado e parcialmente desidratado e que em breve será um bacon delicioso!



sexta-feira, 13 de abril de 2018

Papada fumada


             Trazida para o ambiente alentejano por “galegos”, “ratinhos” e outras maltas que chegavam das Beiras e mais a Norte para os trabalhos agrícolas sazonais do montado e das searas, a papada é um vestígio do unto, gordura temperada, ensacada e fumada que era usada nas cozinhas populares beirãs e transmontanas.
Hoje virtualmente extinta, feita aqui e ali como curiosidade histórica, a papada fumada foi muitas vezes conduto e petisco de taberna de ranchos de tal forma pobres que tinham de recorrer às partes menos nobres do porco, neste caso a manta de toucinho que corresponde ao pescoço do porco, muitas vezes ensanguentado, trazendo agarrada parte da glândula parótida e hoje usada para extracção de banha e fabrico de torresmos pela comunidade africana e pouco mais.
Não tendo acesso às possibilidades de uma cozinha ou a tripa nas casas em que ficavam durante a sua estadia nas herdades, esta peça entremeada e rejeitada era conservada por meios básicos, uma salga ligeira, tempero com a massa de pimentão e uma fumagem sobre as brasas onde se aqueciam à noite, às vezes ensacando a papada numa meia, para melhor a dependurar ao fumo.
O certo é que as papadas fumadas se tornaram populares não só entre migrantes mas também entre ganhões e o caso não é para menos dada a excelência de sabores obtidos de uma preparação que, como tantas provenientes do Alentejo pobre, se consegue com quase nada.
Se não souber onde encontrar à venda uma papada fumada, tarefa quase impossível no comércio de fumeiros, poderá sempre fazê-la, aliando ao prazer do petisco em si, um outro que vem da descoberta de gestos perdidos há muito e que dá outra dimensão à serena degustação de umas finas fatias de papada.

Ingredientes:

Papada de porco
Sal
Massa de pimentão

Preparação:

A aquisição da papada propriamente dita pode não ser fácil em ambiente citadino mas poderá sempre encomendar no seu talho que a mandará vir para si ou então comprá-la nos mercados mais periféricos, que abastecem as franjas mais pobres da população que vivem em cinturas urbanas.
Parece uma tira de toucinho entremeado com bastante gordura e restos de uma víscera que é a glândula salivar e que deverá deixar.

Lave, retire o courato e apare.

Corte no sentido do comprimento,
de modo a fazer duas tiras e a expor a camada interna de músculo que, de outro modo, dificilmente poderia secar e salgar.

 Esfregue   sal e deixe durante 24 horas.
Lave de novo, seque e barre com massa de pimentão, embrulhe em película e deixe no frigorífico por uma semana.
Faça um lume de carvão e ponha madeira de azinho seca sobre as brasas de modo a que se consuma devagar. A papada deverá estar por cima pelo menos a um metro de distância de modo a que seja fumigada mas não apanhe calor.
A fumagem deve durar dois ou três dias, após o que a papada está pronta sendo apenas necessário que seque o tempo necessário a que adquira a consistência de um toucinho fumado, o que demora entre duas a três semanas conforme a humidade do ar.

A carne da papada, atravessada por inúmeros veios de gordura,
tem um sabor único e é ainda melhor fatiada muito fina, ficando a raiar o divino se grelhada ou frita como o bacon.


terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Migas de espargos selvagens com carne


          É um dos pratos recorrentes da cozinha alentejana, de tal modo conhecido e repetido aqui e ali que, não fosse a inovação que se introduz no modo de preparação dos espargos e uma dica para resolver um problema culinário trivial mas que geralmente fica por mencionar, não teria aqui cabimento.
Assim, neste ano em que colhi espargos selvagens que deram para tudo e ainda sobraram para mais, aqui ficam estas migas de espargos com carne de porco frita.

Ingredientes:

Carne de porco (cachaço ou entremeada)
Massa de pimentão
Alhos e louro
Pimenta
Banha de porco
Espargos selvagens
Azeite
Pão duro
Pão duro ralado ou tosta ralada
Água
Rodelas de laranja

Preparação:

Corte a carne em nacos, tempere de véspera com massa de pimentão, pimenta, louro e alhos.
Frite a carne assim marinada
numa quantidade generosa de banha de porco. Reserve carne e pingue.
Prepare os espargos como se disse na receita anterior e salteie-os em azeite aromatizado com alhos. Reserve.

A preparação de umas migas simultaneamente firmes como é tradicional neste prato e homogéneas levanta um problema culinário, pois se a obtenção da homogeneidade obriga a aumentar a humidade, esta é inimiga da firmeza final que se deseja para estas migas. Quando este problema não é resolvido*, ficam migas firmes mas com vestígios demasiado evidentes de pão e côdeas ou migas demasiado moles para serem moldadas.

Reduza uma sexta parte do pão duro a migalhas finas num processador. Reserve.
Demolhe bem o restante pão e leve-o ao lume sobre o pingue que resultou da fritura da carne até que estejam formadas migas se bem que ainda moles. 
Seque então as migas através da adição das migalhas de pão
ou tosta ralada, que irá dar firmeza às migas e permitir que as molde sobre a pedra untada, por fim os espargos salteados,
envolva bem, molde-as na pedra untada
e apresente as migas  na travessa de serviço, rodeadas pela carne frita e rodelas de laranja.

Nota: *O modo de resolver este dilema é, ou fazê-las moles e depois deixá-las ao lume o tempo suficiente para que sequem (se dispõe de tempo, nunca é demais o tempo de cozedura das migas), ou usar uma ajuda culinária que permita absorver rapidamente o excesso de água que permitiu a confecção de umas migas de boa qualidade e textura cremosa. Esta ajuda consiste na adição de pão seco moído ou mesmo tosta ralada seca no final da preparação que absorve o excesso de água e torna as migas firmes e prontas a serem moldadas e servidas.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Açorda* (migas) de espargos selvagens


                   O espargo selvagem (Asparagus officinalis) aparece entre Dezembro e Abril em terrenos não cultivados, já que os arados destroem a parte subterrânea desta planta, a mais importante e que lhe permite sobreviver ano após ano.   
Na verdade este espargo é o “pai” de todos os espargos cultivados e, apesar da finura dos rebentos que nunca ultrapassam a grossura de um lápis, o seu sabor é de tal forma delicado e ao mesmo tempo intenso, que qualquer comparação ou substituição culinária deste selvagem pelo irmão do supermercado é simplesmente impossível.
Este ano as plantas que crescem no meu olival foram pródigas na produção dos deliciosos rebentos,
não tive de comprá-los (são caros e raros) e, pelo custo pessoal de uma infinidade de pequenos golpes e arranhões (os caules velhos são eriçados de espinhos!), pude obter quantidades generosas deste vegetal maravilhoso e fazer, sem moderação, alguns dos meus pratos favoritos.

Ingredientes:

Espargos selvagens
Azeite
Alhos
Bacalhau demolhado (posta alta)
Pão duro, firme
Coentros frescos
Sal e pimenta

Preparação:

Nivele os seus espargos pelo lado da ponta, corte-as a cerca de 5-6cm e corte o resto em rodelas finas (2-3mm) até chegar à parte do rebento que começa a apresentar partes mais lenhosas e que deve rejeitar.

Tradicionalmente, no Alentejo, qualquer prato de espargos selvagens começa pela cozedura destes, o que em minha opinião os priva de uma das melhores contribuições sápidas que estes espargos possibilitam, a de aliarem ao sabor uma incrível textura que a cozedura “alentejana” irremediavelmente destrói.
Nos meus pratos com espargos selvagens, estes são simples e brevemente salteados em azeite aromatizado com alho
e é isso que, se quiser experimentar a sensação de transgressão à norma, deverá fazer.
Garanto a recompensa, na boca, um pouco depois!
Quando as rodelas finas estiverem cozinhadas no azeite aromatizado, o que ocorre em cerca de 2-3 minutos, junte as pontas
durante mais um minuto e reserve pontas e rodelas em separado.
Coza bacalhau alto em água e sal, retire o bacalhau e use o caldo para embeber pão duro e firme como o pão alentejano e outros regionais de formato grande.

Leve este pão encharcado no caldo do bacalhau ao lume, vá mexendo e deixe desfazer
e ganhar a consistência típica de uma açorda*, nem tão mole como uma açorda de marisco nem tão sólida como as migas alentejanas de acompanhar carne de porco frita, moldadas como um chouriço.

Desfaça o bacalhau em lascas e reserve algumas para a decoração da açorda.
Junte este bacalhau partido e as rodelas de espargos bem como o azeite em que foram salteadas à açorda,
envolva, rectifique temperos e deixe fervinhar mais uns minutos.
Junte por fim os coentros picados e um golpe de azeite cru, envolva,
apague o lume e passe para travessa de serviço, decorada a açorda com as lascas de bacalhau e as pontas de rebentos de espargos.
 Sirva bem quente; este é um prato de conforto que não admite esperas!

Nota: * As discussões artificiais sobre a justeza dos nomes “açorda” e “migas” são isso mesmo: inúteis e estéreis!
No Alentejo chama-se “migas” àquilo que noutros locais se chama “açorda”, chama-se “açorda” àquilo que noutros locais chamamos “sopa de pão”. São regionalismos, são normais e não há aqui cabimento para se dizer que é certo ou errado, é o uso de cada sítio e na verdade sabe-se sempre do que se está a falar.
Aqui, chamei-lhe “açorda” simplesmente porque eu não sou alentejano e como este prato apresenta uma importante variação ao que por ali se costuma fazer, ficou a terminologia lisboeta. Se tivesse cozido os espargos, ter-lhe-ia chamado “migas”.