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Os pratos são entidades vivas e idiossincráticas, até porque feitos por alguém num momento determinado e irrepetível. A receita de um certo prato é, antes de mais, a sua redução canónica, a menorização da obra em favor do esboço.
Claro que os esboços são necessários à prossecução da obra e as receitas são, se encaradas como tal, um elemento fundamental no planeamento de uma refeição ou prato. Mas, tal como o mestre faz um primeiro esquiço à mão levantada, sobre o qual vai então desenvolver a obra segundo a sua genialidade, também a receita deve ser um fio condutor, questionável a cada momento, alterável a todo o momento segundo o impulso, a imaginação e a inventiva de quem está a exercer o ofício de cozinhar.
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Assiste-se a cada passo, infelizmente, à valorização do pormenor cego, ao seguidismo amorfo da receita, sem questionar as razões e intenções de cada passo, sem distinguir aquilo que é o tronco principal do prato, a sua alma identitária, do que é acessório, ramagens que serviram aquele prato, naquela vez, mas que não é cânone nem assinatura obrigatória.
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Os risottos, que é o nome que os italianos atribuem aos pratos de arroz em que se valorizam a cremosidade e o amido finais, tornaram-se moda há poucos anos e, como não podia deixar de ser, a esmagadora maioria das receitas existentes valorizou essencial e acessório no mesmo saco, criando um pastiche de risotto, uma caricatura deste grande prato popular italiano que, à conta dessas receitas tantas vezes assinadas por grandes "mestres" internacionais dos livros de culinária (esses também, lá e cá, um caso de reprodução tipo cogumelo), passou a ser um "malandrinho" feito aos poucos e muito mexidinho, afogado no omnipresente sabor do Parmesão ou do Grana Padano, toque de fecho de quase todas as receitas de risottos.
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A utilização de queijos em geral e de queijos fortes em particular, na cozinha, é uma das técnicas mais delicadas e arriscadas da culinária. Há que questionar o que se quer obter e o que se tem a preservar em termos de sabores. Um Parmesão é, por si próprio, um sabor único e magnífico, pode ser a estrela do prato ou valorizar por combinação harmónica ou contrastante um determinado sabor, também ele forte, mas também pode ser um sabor tirano que tudo apaga com a sua força e preponderância.
É isso que se passa em inúmeros risottos, concebidos para revelarem sabores e aromas subtis, quase todos os de peixe e de fungos, alguns de carnes suaves e delicadas, em que a missão do queijo é aveludar e texturizar o "molho" de amido que envolve os bagos de cereal e não apagar os sabores tão trabalhosamente extraídos. Nestes casos que, atrevo-me a dizer, serão a maioria dos risottos, o queijo a utilizar terá que ser outro e até não é muito importante que seja um queijo de primeira categoria. Para engrossar e aromatizar levemente o caldo de um risotto, serve bem um Mascarponne , Mozarela, ou mesmo um queijo tipo "prato" vulgar (castelões e quejandos) que, depois de fundidos no molho, desempenham um papel com que, decerto, nunca se atreveram sequer a sonhar.
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Nota:
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Antigamente havia bem poucos livros sobre comidas. Os cozinheiros cozinhavam e os escritores escreviam; o livro de culinária surgia quando, por um bambúrrio de sorte, alguém partilhava os dois misteres e isso era coisa bem rara.
Hoje, a democratização da edição permite que, para se "escrever" um livro, baste ter ido duas vezes à televisão, por um motivo qualquer ou ser o senhor que lê as notícias no telejornal. Para livros de receitas então, nem isso! Saber cozinhar para quê? Tiram-se umas receitas daqui e dali (ou a editora encarrega-se dessa trabalheira), umas fotos enormes de estúdio e a carinha laroca na capa, sorriso pepsodent, já está!