segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Projeto L - Jantar EtiL2

................... Foi na passada Terça-Feira que se consumou mais um jantar transcontinental da série L, que juntou as mesas lisboeta e paulistana do Outras Comidas e do D.C.P.V e levou o cognome de Etil2.
Como vos disse em post anterior, foi um conjunto de receitas cujo fio condutor andou da cachaça para o vinho em homenagem ao acrónimo identificador do outro comensal.
Publicadas as receitas orientadoras do repasto, irei aqui mostrar, em pormenor, como foi o jantar, que começou com uma variação sobre um dos petiscos mais portugueses, o chouriço assado.
Mandava a receita que fossem as rodelas de legítimo chouriço caseiro alentejano (lá chamam-lhe linguíça)
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assadas em brasileira cachaça ardente (o que se conseguiu duplicando-lhe a graduação)
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e acompanhadas de sabores bem mediterrânicos da polenta frita e dos crocantes aros de cebola, uma a atestar um sabor de antanho e os outros a impôr uma afirmação de modernidade.
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Ainda mal extinto o sabor da entrada, cumprida a sua função estimulante do apetite para o que se avizinhava, chegaram as que deveriam ter sido garnizés, as pequenas e saborosas aves que entre nós se chamam também "cocós", "chichiritas", "piriquitas" etc., mas que foram afinal substituídas por primas de igual envergadura, frangaínhas de quatro semanas de idade e 375g em vida, do tamanho de uma perdiz e de uma delicadeza de carnes e de sabor que nos faz, inevitavelmente, interrogar sobre o motivo porque são tão raras num país onde se cria e come tanto frango?
Corados em ghee e lume forte,
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foi-lhes enfim cedida a companhia dos temperos, das chalotas e dos vinhos do Porto e aí estufaram,
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Tendo sido depois recheados com uvas brancas e tintas antes de irem acabar no forno
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prontas para serem acompanhadas por espinafres Nova Zelândia, só muito levemente salteados em azeite e alho
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e por castanhas que a receita mandava assadas com os frangaínhos mas que decidi contrariar (a minha própria receita é tão desrespeitável como qualquer outra!) e transformei num puré
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temperado e enriquecido com natas, manteiga e anis em grão que ficou maravilhoso e se revelou perfeito de harmonia
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com as pequenas aves
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e o molho dos vinhos do Porto devidamente reduzidos.
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Dois alcoólatras encontraram-se e com a sua união, ao menos, não se estragaram duas casas. Era o que se podia dizer deste pudim de Porto tawny, de que vos falei aqui, e que, em relação à receita levou mais 20% de Porto que o inicialmente previsto, o conhecido copito que o bêbado em retirada ainda bebe "para o caminho", acompanhado de umas peras igualmente a cair de bêbedas por terem estado longamente imersas até que o vinho as penetrasse até ao caroço! A acompanhar o casal a casa, esse antiquíssimo bolo beirão que dá pelo nome de Borrachão.
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Desta união nasceu a sobremesa-homenagem ao DCPV que encerrou mais este episódio da saga Projeto L que, como não poderia deixar de ser foi acompanhada por um vinho à sua altura, na ocasião o Vale da Judia, tinto de 2007 que, feito com uvas Castelão na Adega de Pegões pela mão do enólogo Jaime Quendera é um belíssimo exemplo da pujança que estão a mostrar a cada dia os vinhos da península de Setúbal.

sábado, 27 de novembro de 2010

Atum de Barrica à Moda Saloia

............... Quando se sujeita o peixe a uma salmoura saturada por um período muito prolongado, dá-se um fenómeno químico muito complexo de substituição de parte da proteína pelo sal, com uma modificação dramática na textura do peixe. É o método de fazer as preciosas conservas de anchovas (biqueirão) e o processo é conhecido por anchovização, embora os dicionários ignorem a existência de tal vocábulo.
O atum em salmoura é uma conserva antiquíssima, muito anterior à conservação em lata e o modo de fazer chegar longe, no país e no tempo, este peixe de pesca sazonal.
Depois da introdução das modernas técnicas conserveiras, este atum "em barrica", pois vinha acondicionado em barricas de madeira, passou a ser um produto pobre que aproveitava as partes escuras do tunídeo, toda a parte da barriga e forro das costelas, o "entrecosto" do atum, onde se encontra a preciosa ventresca, que antes de ser iguaria gourmet, era ignorada e regeitada pela indústria conserveira e acabava nas barricas.
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O uso de atum de barrica perdurou em alguns nichos bem definidos: em Vila Real de Santo António e um pouco por toda a costa algarvia, para fazer o Atum à Algarvia e a verdadeira Estupeta, na zona saloia e na quase desaparecida e preciosa Cozinha Jagoz (Ericeira) e em mais uns poucos nichos beirões.
Costumava ir comê-lo a uma tasca na Buraca, que o fazia por encomenda, só para grupos, cujo paradeiro perdi, hoje devorada pela voragem de um condomínio com nome de herdade.
Felizmente ainda se vai encontrando, já não em barrica de madeira mas em baldes de plástico, igual a si próprio, ostentando um aspeto repelente e um cheiro a condizer, escondendo aos não iniciados a maravilha sápida que encerra, simplesmente cozido com umas batatas e cebolas. Assim:
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Ingredientes:
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Atum de barrica
Cebolas
Batatas
Couve Portuguesa (facultativo)
Sal
Azeite e vinagre de vinho
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Preparação:
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Ao comprar, escolha as partes de atum que têm parte das longas espinhas da costela.
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Parta em pedaços e demolhe por 24 horas, mudando amiúde a água; este atum é muito mais salgado que bacalhau. Se puser algo que faça altura no fundo do recipiente, de modo a que o atum não fique no fundo, a dessalação é muito mais eficaz.
Na Cozinha Jagoz o atum é lavado e esfregado à mão até estar com o sal certo mas não fica de molho..
Ponha a cozer em água temperada com sal as batatas, cebolas e, se quiser alguma couve.
Quandoa cozedura estiver a meio, introduza os bocados de atum e continue a cozedura em lume baixo.
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Sirva e tempere com azeite e vinagre.
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Nota vínica: Castelão temperado com um pouco de Touriga Nacional e Cabernet Sauvignon e estagiado em carvalho francês, este Fontanário de Pegões 2008 mostrou uma personalidade ideal para a mariadagem sempre difícil com o sabor forte e sui generis deste atum de barrica. Uma escolha feliz nesta minha recente aventura pelos vinhos das terras do Sado.
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Uma ementa etílica (DCPV)

Tendo cabido ao Outras Comidas a indicação de cardápio para mais um encontro gastro-intercontinental, o Projeto L, que decorreu em Lisboa e São Paulo na passada Terça-feira, decidi criá-lo em homenagem aos meus companheiros gastronómicos do blog irmão D.C.P.V., acrónimo da charla "Da Cachaça Para o Vinho", fazendo que fosse guiado do princípio ao fim por um programa etílico, uma viagem a começar em cachaça e a acabar em vinho, sem tréguas pelo meio. Desse jantar dar-vos-ei conta na próxima Segunda-Feira 29 em simultâneo com a publicação, pelo Eduardo Luz, dos resultados brasileiros desta mesma ementa, a que, alusivamente, chamei Etil2.

.............EtiL2

....................23/11/2010

...................Ementa


...........Chouriço português flambé em cachaça

...........Garnizé estufado em Porto

...........Peras bêbedas em pudim etilizado, com
borrachão para enxugar (DCPV)


...........................Receitas


Entrada - Chouriço português flambé em Cachaça

Ingredientes (por pessoa) :
3 rodelas de chouriço português, preferencialmente DOP Alentejo;
1 colher de sopa de cachaça (48º) + 1 colher de sopa de álcool alimentar (90º) ou 2 colheres de sopa de cachaça de 60º;
3 aros de cebola crocante;
1 tira de polenta de milho amarelo, frita como palito de batata grosso.
Preparação: Disponha as rodelas de chouriço ao alto, num pequeno recipiente de cerâmica, côncavo, previamente bem aquecido no forno.
Coloque este pequeno recipiente no prato de servir e guarneça com a cebola crocante e o palito de polenta frita. Ao apresentar, regar o chouriço com a cachaça e acender.

Prato - Garnizé estufado em Porto

Ingredientes (por pessoa) :
1 Garnizé de 300g ou, na falta, 1 frangaínho do mesmo peso(4 semanas);
3 échalottes;
10/12 bagos de uva fresca;
10/12 castanhas;
1 dl de vinho do Porto, branco-seco + 1dl de vinho do Porto, Tawny;
1 colher de sopa de manteiga clarificada;
Sal marinho e pimenta da Jamaica em grão;
Salsa.
Preparação:
Deixe de véspera os garnizés mergulhados numa salmoura feita com 1 litro de água, 2 colheres de sopa de sal marinho (não iodado), 1 colher de sobremesa de pimenta (do reino) em grão e sumo e casca de 6 limas.
Escorra e seque as aves. Doure-as em manteiga clarificada por todos os lados, em lume forte. Junte então as échalottes finamente cortadas, a pimenta da Jamaica, o sal e os vinhos do Porto e leve a lume forte por cerca de 20m, destapado, de modo a reduzir o volume de liquido a metade.
Retire as aves do vinho e coloque-as numa assadeira, encha a cavidade com as uvas e disponha as castanhas, que devem estar já peladas, à volta.
Leve a 175ºC por cerca de 20 minutos ou até as castanhas estarem bem assadas. Durante esse tempo reduza o Porto onde cozeu as aves até este ter uma consistência xaroposa. Verifique e retifique os temperos do molho.
Sirva uma ave por pessoa com as castanhas e a redução vínica, polvilhada com salsa picada.

Sobremesa - Peras bêbedas em pudim etilizado, com borrachão para enxugar (DCPV)

Ingredientes:
(Peras bêbedas)
Peras pequenas
Vinho Tinto
Açúcar
Canela em pau
Cravinho
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(Pudim etilizado)
1 lata de leite condensado
1 “lata” de ovos
1 “lata” de Porto tawny (ou cachaça, ou rum, ou whisky, ou…)
Açúcar para caramelizar a forma
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(Borrachão)
1 medida de azeite virgem
1 medida de óleo
1 medida de vinho branco
1 medida de aguardente branca (cachaça)
2 medidas de açúcar
1 pitada de canela em pó
Ovo batido
Farinha com fermento químico, q.b.

Preparação:
Descasque as peras sem as partir e coza-as em vinho tinto adoçado com açúcar e temperado com canela e um toque de cravinho. Deixe arrefecer os frutos imersos na calda de modo a ficarem tingidos em profundidade.
Misture duas medidas de calda com uma medida de Porto ruby e reduza até obter uma consistência francamente xaroposa. Reserve.
Vaze uma lata de leite condensado para uma tigela e use a lata vazia para medir os ovos e o álcool escolhido. Misture bem e coza em forno a 150º C em banho-maria, em formas individuais caramelizadas.
Para os borrachões use uma medida pequena. Misture todos os ingredientes e por fim a farinha até obter uma massa que se possa tender.
Estenda com a espessura de um lápis, corte em palitos com uma carretilha e coza até estarem louros em tabuleiro untado, pincelados com ovo.

Montagem – Monte de forma combinada pêra(s) e pudim e ligue com a redução de vinho e Porto. Acompanha com um palito de borrachão.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Ao Encontro das Castanhas (Chestnut Escort*)

...................... Já salvaram muitas vidas, constituindo-se alimento principal e muitas vezes único em longos invernos de outrora, quando tudo o mais falhava exceto a fome e as castanhas.
Para muitos de nós, a castanha tornou-se um fruto que se come cozido ou assado em magustos de S. Martinho e pouco mais, tendo o seu uso culinário como acompanhante de carnes ficado relegado para raras ocasiões especiais.
Mas hoje, Quarta-Feira trilógica ( e dia de greve!muito bom para pratos assim) é seguramente esse dia especial e, desta vez por indicação do Cupido, eu, a Ana e ele, é claro, vamos avançar ao encontro das castanhas, encaradas como luxuosas acompanhantes da carne.
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Para mim, escravo do palato, que não me importo nada com fatias bonitinhas e regulares, o cachaço é a mais nobre peça do porco, mesmo mais que os lombinhos.
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Foi com um cachaço devidamente desenrolado (atenção! não tentem fazer isto nas vossas cozinhas.**) e castanhas frescas de Trás-os-Montes, que se fez este prato, inspirado longinquamente numa garoupa de JVC e que se poderia chamar, se fosse preciso, “Cachaço recheado com castanha, noz e manteiga, a enrolar presunto, assado em vácuo e baixa temperatura e acompanhado de frutos de S.Martinho”. Mas é claro que não é preciso (e eu que até detesto estes pretensiosos títulos que se dizem descritivos e que só mostram a pobreza imaginativa de quem os inventa), só é preciso dizer, isso sim, que estava uma maravilha e (obrigado Senhor!) ainda bem que sobrou!
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Ingredientes:
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1 cachaço desossado de porco
125g de presunto fatiado fino
20 + 30 castanhas
6-7 nozes
3 colheres de sopa de manteiga
1 colher de chá de erva doce em grão
500g de batata doce amarela
1 colher de sopa de banha
Pimentão doce, sal, pimenta preta, massa de alho (ou em pó)
Louro
Vinagre de vinho (se assar a baixa temperatura) ***
Vinho branco
Espinafres Nova Zelândia (Tetragonia tetragonoides)
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Preparação:
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Dê um golpe superficial à volta de 20 castanhas, escalde-as em água fervente por 1 minuto e retire-lhes a casca. Coza-as em água e sal até estarem tenras.
Com o auxílio de uma faca comprida e muito afiada**, abra “desenrolando” o cachaço,
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tentando que a lâmina de carne fique com uma espessura de 1,5cm.
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Se vai cozinhar a baixa temperatura, borrife toda a lâmina de carne com vinagre de vinho. Se optou por um método mais clássico, salte este passo.
Tempere com um pouco de massa de alho ou alho em pó, pimenta preta e pimentão doce. Forre então a carne com fatias finas de presunto (que irão dar o sal)
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e por fim uma camada de castanha cozida, esmagada a garfo com a manteiga, pimenta e erva doce em grão.
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Por cima espalhe a noz picada muito grosseiramente.
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Enrole,
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Ate,
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Tempere o rolo de cachaço atado com sal grosso, massa de alho, louro, pimenta preta e pimentão doce.
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Introduza o cachaço num saco ou tubo de plástico próprio para assados. Se possui uma máquina para fechar sacos a vácuo, use-a para fechar o conjunto. Se, como eu, não a tem, adapte o bocal do seu aspirador à boca do saco,
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ponha o aspirador a aspirar e, quando vir que o plástico está completamente aderente à carne, feche o saco junto a esta com um cordel. O aspeto é o de um paio dentro da sua pele de tripa bem justa.
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Ponha no forno a 70º-75ºC (reais) por 8 horas.
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Ao fim deste tempo a carne apresenta uma tenrura sublime e existe uma quantidade significativa de molho dentro do saco, formado pelas gorduras fundidas e alguns dos sucos da carne.
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Abra, adicione a banha e um copo de vinho branco ao molho e leve ao lume, num tacho, a reduzir até metade.
Disponha a carne numa assadeira, rodeada pelas castanhas peladas e batata doce amarela, às rodelas grossas.
Regue com o molho reduzido e leve a forno esperto (180ºC) até que as castanhas e batata doce estejam assadas,
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juntando vinho branco se necessário para compensar a evaporação do molho.
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Sirva com os espinafres levemente salteados em azeite e um pouco de alho e sal.
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Notas:
*PJ (private joke)
** Se não tem muito à vontade no manejo de facas de carne extremamente afiadas, abrir “desenrolando” uma peça bastante heterogénea como é o cachaço de porco é uma atividade intrinsecamente perigosa para os seus dedos. Peça no seu talho para que lhe façam esse trabalho.
*** A técnica de baixa temperatura que uso, apesar de decorrer acima da temperatura de pasteurização, comporta algum risco bacteriológico, aumentado quando se faz a vácuo com a possibilidade de desenvolvimento de anaeróbios, entre os quais o temível e mortal Clostridium botulinum, a bactéria produtora do Botox, que paralisa as rugas e também o nosso coração!
Para evitar este risco, que é real quando a preparação leva, como esta, 8 horas, há que reduzir o Ph do cozinhado para valores abaixo de 5. Nas preparações industriais usam-se os chamados reguladores de acidez, normalmente os ácidos cítrico ou fosfórico. Nós usamos o vinagre de vinho, pelo que ele é necessário apenas se optar por uma técnica de baixa temperatura.

... e já vou pensando no "Trilógico" da próxima semana, que a Ana vai dizer...

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Receita?

........................ Se o leitor ouvisse a alguém que, deleitado com a descoberta da literatura de Lobo Antunes, declarasse ter descoberto finalmente a receita para o êxito no ofício de escritor, nunca começar um parágrafo, excepto o de abertura, com letra maiúscula, ali estava a secreta receita, diria por certo - "que grande parvo que ali vai!"- o leitor sabe que a Arte, essa misteriosa chama que nos toca e emociona, não cabe em receitas, tem de ser livre.

E no entanto, quantos de nós que se envergonhariam de ostentar uma peça de vestuário "Prada" ou uma mala "Louis Vuitton" dessas que se compram nas feiras suburbanas por uns cêntimos, seguimos e ostentamos com religiosa devoção as receitas que aquela revista, aquele chef ou aquele gourmet dizem ser a maneira correta de comer?
Quantos de nós afirmam com convicção que os ovos estrelam-se em manteiga e não se pôe sal na gema? Disse-o mestre Escoffier porque era como ele gostava de ovos estrelados e, como ele era o grande Escoffier, logo uma legião de burros passou a dizer que era a lei e que gente de gosto apurado assim deve gostar!
Eu faço-os em azeite e com sal grosso bem sobre a gema; é como eu gosto!
Todo o cânone é uma tirania, toda a receita um espartilho. Podem e devem servir como inspiração, como fio condutor da feitura de um prato, como um transmitir de técnicas e experiência de outrem que a nós aproveita à obtenção de um gosto nosso, a nossa cozinha.
É por isto que a maioria das receitas que vos deixo são receitas abertas, deixam hipóteses de escolha, deixam liberdade, deixam campo à "heresia" e à descoberta do caminho próprio por onde deve seguir a confeção da nossa comida e que a fará ser mesmo a comida de mais ninguém.
Claro que se excetuam as receitas que são elas próprias receitas tradicionais e enquanto tal devem ser respeitadas ou então declaradamente desrespeitadas e partida para novas descobertas (com um novo nome); é assim que nascem e vivem as Cozinhas.

domingo, 21 de novembro de 2010

Grelhar Peixe no Forno

................. Grelhar peixe é arte levada a sério entre nós, com resultados por demais conhecidos, fruto da excelência das matérias primas e da experiência dos grelhadores. Embora se percam algumas oportunidades de experimentar o que por esse mundo fora se vai fazendo em matéria de grelhados, não há dúvida que quando há carvão, peixe fresco, sal e uma mão competente ao grelhador, comem-se e chora-se por mais.
Mas o facto é que a maioria das vezes não há tempo nem sítio para o carvão e os exaustores de apartamento raramente conseguem cumprir a contento a missão de livrar a casa do cheiro de peixe grelhado na grelha no fogão. Resta grelhar no forno mas aqui as coisas já não são simples e intuitivas.
É disso que hoje vos vou falar.
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Grelhar consiste em aplicar temperaturas muito altas pelo exterior e por pouco tempo, tostando por fora e fazendo com que a temperatura atingida à superfície "empurre" a humidade própria do alimento para o seu interior. Isto consegue-se na perfeição com calor por baixo, contrariando a gravidade que tende a fazer cair os sucos.
Mas no forno o calor vem do grill, de cima, e os sucos fluem livremente a favor da gravidade e por isso os grelhados tendem à secura, perdendo sempre na comparação com os grelhados em grelha de carvão.
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Eram dois sargos "quase vivos" e aos quais só a grelha prestaria justiça. Lá fora, chovia e restava a solução forno. Foi uma excelente oportunidade para fazer o forno trabalhar...
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Ingredientes:
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2 sargos de 500g
Sal marinho
Sálvia, tomilho, hortelã da ribeira e coentros*
Azeite
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Preparação:
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Escame e eviscere o peixe. Faça dois cortes de cada lado e introduza em cada corte, sal marinho grosso, uma folha de sálvia e um pedacinho de hortelã da ribeira e de tomilho.
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Na abertura ventral ponha, além do sal, coentros abundantes. Os coentros pôe-se ali pois resistem mal ao calor direto intenso.
Aqueça o forno ao máximo, passe para grill (calor de cima), passe um fio de azeite sobre a face superior do peixe
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e leve ao forno na posição mais alta por cerca de 7 minutos.
Retire, vire os peixes e ponha nos golpes do lado agora em cima as mesmas ervas que pôs no outro lado.
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Leve a grelhar mais 3-4 minutos e sirva logo.
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Como verificará, o peixe fica suculento e totalmente cozinhado, não tendo havido tempo para a saída de sucos e gordura.
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Não esqueça que após estar cozinhado, isto é, a proteína coagulada, a partir daqui o peixe já só seca e perde sabor. Para um peixe de 500g com calor muito forte, isto fica feito em 10minutos (7m+3m).
Por cá padece-se muito da fobia do peixe cru e à conta desta fobia o peixe é sistemáticamente sobrecozinhado, perdendo-se assim grande parte da sua delicadeza e sabor.
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Nota:
A aromatização do peixe grelhado é uma prática muito usada lá fora mas que também gera alguns anticorpos nos países tradicionalmente grandes consumidores de peixe, Portugal, Itália, Grécia.
No entanto, o uso de plantas aromáticas, longe de apagar ou disfarçar o sabor do peixe, realça-o e enobrece-o. Claro que certos exageros que se vêem por aí, com os peixes tranformados em ramalhetes floridos, serão de evitar, como todos os exageros, que se pagam caro em gastronomia.
Em relação às aromáticas propriamente ditas, não será demais realçar a importância da sua frescura e logo, do facto de podermos dispor delas vivas, minutos antes da utilização. Isto só se consegue se tivermos nos nossos pátios, quintais ou mesmo janelas de apartamento, vasos com estas magníficas ajudas aos nossos pratos em geral e aos grelhados em particular.
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Salsa, coentros, louro, sálvia, cebolinho, hortelã, hortelã-pimenta, hortelã da ribeira, aipo, poejos, erva-príncipe, mangericão, tomilho, tomilho-limão, alecrim, etc. são algumas das ervas que mantenho em vaso com pleno êxito, num pátio de Lisboa.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Açorda de Bacalhau (sintética)

................ Nesta segunda ronda de prato trilógico com a Cozinha da Anna e o Garficopo, coube-me a tarefa de indicá-lo e decidi fazê-lo mantendo o espírito de liberdade criativa que vem da primeira ronda, em que a Ana indicou simplesmente "leite creme" e cada um que apresentasse o que lhe aprouvesse.
Assim, tendo consciência que "açorda de bacalhau" significa apenas que leva água, bacalhau e pão e que no Alentejo até é uma sopa, a liberdade não poderia ser maior!
Por mim, que sou açordeiro impenitente e de longa data, decidi criar algo de novo e para isso recorri a essa ferramenta tão preciosa quanto humana que é a síntese (desengane-se quem pensou, ao ler o título, que eu me tinha "passado" para o inimigo e enveredado por alguma comida artificial ou com delícias do mar).
Criar algo bom, juntando as partes mais preciosas de muitas açordas e pratos de bacalhau que povoaram o meu universo sápido e também este blog, foi aquilo a que me propus e não foi tarefa fácil.
Da Lapardana à Açorda de Ovas de Sável, passando por algo diretamente do velho Gomes de Sá e por outras açordas de bacalhau, esta Açorda de Bacalhau Sintética é daqueles pratos que evoca sem salganhar e que me deixou muito feliz por aqui se ter deixado criar.
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Ingredientes (para 4 pessoas):
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4 postas de bacalhau demolhado
4 ovas de bacalhau (duas duplas)
500g de broa de milho amarelo
75g de pão branco de trigo (1 carcaça ou papo-seco)
4 dentes de alho
1 dl de azeite virgem
Sal e Pimenta
0,5l de leite inteiro
Coentros frescos
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Preparação:
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Prévia: Coza um par de ovas em água e sal. Ponha as postas num recipiente vazio e escalde-as derramando água a ferver onde cozeu as ovas sobre elas e deixando-as submersas nesta água por cerca de 30 segundos.
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Escorra-as, reservando o líquido, retire peles e espinhas e abra as lascas para uma tigela, sem as desfazer. Cubra estas lascas com leite bem quente e deixe por 2 a 3 horas.
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Na altura: Retire a côdea à broa
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e esfarele o miolo para uma tigela. Regue este miolo de broa e a carcaça com o leite em que esteve o bacalhau e deixe ensopar bem. Se necessário, acrescente alguma da água em que cozeu as ovas e escaldou as postas.
Leve os alhos ao lume baixo em metade do azeite e antes de começarem a alourar, junte os ovos de bacalhau que extraiu abrindo a segunda ova sobre a tábua e raspando-a com o lado rombo de uma faca.
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Frite-os neste azeite, mexendo para que se separem bem.
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Junte então o pão e o leite, envolva bem com o azeite, alhos e ovos, junte depois o resto do azeite cru
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e depois de ferver, deixe ao lume em lume mínimo por pelo menos 50minutos, mexendo de quando em vez para prevenir qualquer possibilidade de agarrar ao fundo. A açorda está pronta quando deixa de se poder sentir heterogénea e se torna translúcida e brilhante, deixando de agarrar ao tacho. Misture então os coentros cortados grosseiramente.
Vaze-a para uma travessa de ir ao forno, faça uma depressão ligeira ao centro onde vai colocar as lascas de bacalhau, enfeite à volta com rodelas de ova cozida
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e leve a tostar rapidamente em forno muito quente por breves minutos.
Retire do forno, passe um fio de azeite muito bom (usei Romeu) sobre o bacalhau, salpique com um pouco de coentro fresco
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e sirva logo, misturando parcialmente, ao servir, as lascas com a açorda.
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O acompanhamento vínico desta açorda esteve para ser um rosé de Pegões com o qual queria quebrar a minha antiga malapata com esta variedade mestiça de vinho.
Mas depois de provar a açorda, foi-se-me a coragem para experimentações, para mais rosadas e, pelo seguro, avancei com este Vale da Judia 2009, também de Pegões, um dos moscatéis mais sedutores e poderosos que conheço e que fez as devidas honras à novel açorda.