Quanto às verdadeiras obras de autor, tanto as que nascem nas nossas
cozinhas anónimas sempre que criamos ou ensaiamos um novo sabor, um novo prato,
como naquelas onde profissionais inventam o futuro da cozinha, são exercícios
artísticos admiráveis que, como toda a arte, é singular e pessoal, sendo a sua
reprodução por outrem que não o artista a sua própria negação.
Isto coloca uma séria dificuldade para esta 112ª Trilogia com a Ana
e o Amândio, sob o tema “Cozinha de Autor”, já que, do mesmo
modo que, se eu desenhasse, não faria um desenho que fosse “parecido” com um
Picasso, também aqui não irei imitar algo que alguém inventou e cuja plenitude
artística só é possível pela sua mão, na sua cozinha e pela sua arte.
Restava-me aparentemente o recurso a algo de que eu próprio fosse
autor, quando me ocorreu um prato de que sou herdeiro, criado pela minha avó Amélia
e transmitido apenas pela via familiar, algo que começou por ser uma adaptação
às idiossincrasias alimentares do meu pai, que não suportava cebola nem alho, e
se tornou num prato minimal, estranho e único: O Amarelo
de Bacalhau da minha avó Amélia da Cruz Pontes ( 1891-1964).
Ingredientes:
Batatas cozidas
Bacalhau cozido
Azeite
Pimenta
Louro
Ovos
Preparação:
Fazer um amarelo de bacalhau é um exercício de paciência, totalmente inadequado
a uma cozinha apressada. Apesar da sua simplicidade, terá de contar, para além
dos ingredientes minimais, com um mínimo de uma hora só para a fase de frigideira.
Pode fazer o amarelo numa frigideira de ferro bem queimada, como esta que eu
usei e que já era da minha avó, terá cerca de um século,
do tempo da cozinha feita no carvão, e sempre
foi a frigideira reservada para o “amarelo”, ou usar uma frigideira com
revestimento anti-aderente usando neste caso uma espátula de madeira com gume.
Misture na frigideira sobras de bacalhau e de batatas, cozidos, tempere
apenas com pimenta moída e folhas de louro,
junte azeite e leve ao lume, cortando
continuamente o bacalhau e as batatas com a parte não cortante de uma faca ou a parte cortante de uma espátula, de modo a que vá fritando em conjunto, pedaços cada vez mais
pequenos mas evitando sempre o esmagar.
Ao fim de cerca de uma hora, já quase não se diferencia o bacalhau da batata
e o conjunto deve ter uma bela cor levemente acastanhada e estar translúcido.
Adicione então ovos batidos e temperados com um pouco de sal,
deixe
fritar completamente enquanto vai partindo os blocos aglutinados pelo ovo até
terem um tamanho que permita comer sem partir.
Sirva o amarelo de bacalhau como entrada ou como prato principal,
acompanhado de azeitonas e salada de alface temperada com azeite e vinagre e
servida com propositado “descuido” de modo a que se dê, no prato, uma certa
contaminação que resulta deliciosa.