sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Kong Xin Cai


              Quando se viaja pelo sul da China e por todo o Sudoeste Asiático, seja qual for o nível da cozinha que tenhamos escolhido, desde a luxuosa à simples “street food”, há um vegetal desconhecido que é omnipresente e que nos encanta, quer seja servido como acompanhamento, entrada ou até como prato.

Geralmente salteado em óleo, com sal, alhos e, por vezes, algum molho de soja, é algo que situamos entre grelos, espinafre e agrião, ficando longe de qualquer deles. Ao indagarmos do que se trata, se temos a sorte de ser um falante de inglês, dir-nos-á que é morning glory ou Water spinach. Se o interlocutor não fala inglês, os nomes passam então pelas mais diversas formas, ong choy, kang kong, kang kung, kong xin cai, tung choi, rau muông no Vietname, e mais uns quantos. 

Para a frente, passarei a designá-lo pela versão mais corrente em mandarim e que também é a forma por que é conhecido nos mercados chineses de Lisboa : Kong Xin Cai que, literalmente, parece querer dizer “vegetal sem coração”, em alusão a apresentar caules ocos, como os do agrião.

Tenha ou não “coração”, o certo é que o Kong Xin Cai é um vegetal delicioso e a boa notícia é que, apesar de se tratar de uma planta aquática tropical, é fácil encontrá-la, fresquíssima, durante a estação quente, cultivada por agricultores chineses a residir em Portugal e disponível, a preço de espinafre ou de grelos, nos supermercados chineses.

Sabendo que se aproxima a estação em que não vou mais poder dispor de Kong Xin Cai, pois não aguenta os rigores frios do nosso Inverno, fiz uma provisão desta preciosidade, que guardo semi-cozinhado e congelado. Mas por agora e até ao fim de Outubro, podemos usá-lo fresco, assim:


Ingredientes:

Kong Xin Cai

Alhos

Sal e pimenta

Malagueta

Óleo alimentar

Molho de soja, Tofu fermentado ou Molho de ostra (facultativos)


Preparação:

Compre um molho de kong xin cai, num supermercado de produtos chineses.

Esta erva tem uma forma aparentada com um pé de grelo de nabo, mas sem flor e pode aproveitar, além das folhas, também a maior parte do caule, que só não é comestível na base, por ser algo fibroso.

Depois de cortar a base, separe as folhas dos caules, já que, apesar de estarem juntos no final, têm tempos de cocção diferentes.


Isto distingue um prato de Kong Xin Cai de cozinha cuidada. No uso em cozinha popular, a planta, caule e folhas, é simplesmente cozinhada em conjunto, ficando as folhas um pouco cozidas demais e os caules um pouco al dente demais. Experimente as duas versões e escolha. Eu prefiro, sem dúvida, a versão mais cuidada e um pouco mais trabalhosa:

Após separar a parte inferior do caule, deve separar caule e folhas,


depois cortar os caules em pedaços de poucos centímetros.

Lave bem em separado e em diversas águas; como com qualquer planta aquática, não podemos garantir o estado sanitário das águas utilizadas no seu cultivo, pelo que uma lavagem exigente é mandatória.

Num óleo alimentar, salteie em lume forte, alhos fatiados, malagueta a gosto, sal e pimenta e os caules em pedaços.


Deixe cozinhar por cerca de 10 minutos. 

Introduza depois as folhas e deixe cozinhar por mais 5 minutos ou até estarem a seu gosto.

Está pronto a comer o Kong Xin Cai, na versão que mais me agrada, os seus sabores e textura subtis apenas aromatizados pelo alho, malagueta, sal e pimenta, às vezes com um pouco de molho de soja, no fim. 

Localmente, usam-se além dos ingredientes indicados, o tofu fermentado. O sabor deste tofu é muito intenso e pungente e prefiro dar mais liberdade ao sabor próprio do Kong Xin Cai. O molho de ostra ou, na sua falta, um filete de anchova desfeito no óleo inicial, são também opções a considerar.

O Kong Xin Cai serve como acompanhamento


 
ou como entrada vegetariana, numa versão que no Sudoeste Asiático é prato único para a refeição de muita gente e que a mim me encanta sobremaneira: misturado com arroz branco, numa tijela que tem o condão de nos transportar ao outro lado do mundo.

quarta-feira, 22 de julho de 2020

Caracóis “subidos”


            Quando há já dez anos aqui reeditei um outro post mais antigo, ainda do tempo do Comidas Caseiras, sobre a preparação de caracóis, estava longe de imaginar que se iria tornar no segundo mais visitado* do Outras Comidas e de longe o mais citado, utilizado e plagiado** por outras publicações desta área, quer no espaço virtual, quer em papel.

Nessa já longínqua publicação, fazia, pela primeira vez entre nós, uma súmula/revisão de todos os aspectos relevantes relacionados com os caracóis, desde a aquisição ao prato, passando até por aspectos geralmente ignorados da sua biologia.
Na verdade, apenas um assunto, até hoje tabu, ensombrava este petisco e se para muitos, menos exigentes, nem se notava, já para outros como eu, havia sempre uma mancha a pairar num prato de caracóis: Os mortos não detectados, os doentes, os moribundos, os parasitados, os putrefactos! Todos aqueles caracóis que acabavam fervidos e cozidos no meio dos outros, as cascas vazias e os corpos ressequidos e escuros que, apesar de os rejeitarmos no prato, deixavam  um rasto de podridão no caldo da confecção. Quem quer sorver com delícia ou até molhar um pedaço de pão no caldo onde se cozinharam animais podres? Basta que apareça uma casca vazia!

Normalmente, os problemas insolúveis têm soluções “ovo de Colombo” e este não é excepção. Demorou dez anos a resolver, e na verdade apareceu resolvido sob a forma de uma travessa de caracóis em que não havia UM SÓ defeituoso, um só “morto”, uma só casca vazia, isto num simples e improvável café de beira de estrada em Alcácer do Sal***, a Tasca do Chico Zé!

Perguntado o próprio Chico Zé, que não é pessoa de “caixinhas” ou segredos, a resposta veio, cristalina: - Não há mortos porque são caracóis subidos…se subiram era porque estavam vivos, não é? Se estiverem mortos, não são capazes de subir!

É então assim…

Preparação:

Na véspera do petisco, à noite, pegue no saco de rede
em que normalmente se adquirem os caracóis e, sem mais observações ou escolhas, mergulhe o saco durante uns segundos em água,
escorra e ponha-os num recipiente baixo,
cobrindo este com algo que os impeça de fugir. Queremos que eles fujam do recipiente, não queremos que se espalhem pela sua casa ou jardim. Eu usei um balde velho, invertido sobre o prato largo que continha os caracóis.
Deixe para o dia seguinte.

Na manhã seguinte, levante a cobertura e verá que os caracóis que estavam vivos, fugiram do prato e estão agora “subidos” e agarrados às paredes e fundo da cobertura.
No prato, ficaram os que não conseguiram fugir: mortos, doentes e estropiados!

O seguimento, quanto a lavagem e confecção é como se disse aqui. 

                    *O primeiro é sobre curtimenta de azeitonas.
                 ** Os plágios,     cópias ou outras utilizações não autorizadas das publicações no Outras Comidas, longe de me incomodarem, são até um estímulo: que melhor reconhecimento da qualidade do meu trabalho, que ver alguém a apresentá-lo como seu?
                    *** Tasca do Chico Zé, Rua do Poço, 20. Alcácer do Sal.
 

sexta-feira, 22 de maio de 2020

Coelho com Nabos

                Por vezes, acontece-nos fazer algo totalmente diverso daquilo que tínhamos sonhado, não tanto por inconstância no propósito ou distracção nossa, mas porque uma série de acontecimentos fortuitos nos conduzem numa qualquer outra direcção.
Quando se cozinha, esses dias que começam com uma intenção e acabam numa refeição nos antípodas da imaginada são muito frequentes, basta por vezes a falta de um ingrediente essencial ou um preço proibitivo para a nossa bolsa e as sonhadas lulas dão em polvo, os salmonetes em carapau. E gostamos à mesma!

Não foi isso que aconteceu com este coelho manso, cuja compra foi despoletada por uma lebre selvagem. Não que eu tenha sequer procurado a tal lebre, que não é o tempo delas, o cinegético, e as raras congeladas não agradam ao paladar e ainda menos às finanças familiares. 
O que aconteceu foi eu lembrar-me desse delicioso prato provençal, “Lièvre aux navets” e, por associação de orelhas (a lebre até é da família do coelho), ter imaginado como seria a associação de coelho com um dos nossos mais mal-amados vegetais, o nabo.
Resulta em cheio!

Ingredientes:

Coelho
Nabos
Cebola
Alhos
Manteiga
Cerveja branca
Farinha de arroz
Louro
Sal e pimenta

Preparação:

Descasque nabos e corte-os em cubos com cerca de dois centímetros de lado.
Coza-os cobertos de água com um pouco de sal durante oito a dez minutos, de modo a que fiquem imperfeitamente cozidos. Escorra e reserve.
Parta o coelho em pedaços médios e reserve (fiz só metade de um, o almoço era apenas para dois).
Refogue cebola e alhos, ambos picados, em manteiga e pimenta preta e quando começar a alourar junte os pedaços de coelho, o sal e uma folha de louro, tape e deixe cozinhar em lume mínimo por cerca de vinte minutos.
Adicione uma colher de sobremesa (+/-) de farinha de arroz, envolva e junte então a cerveja. Usei uma “mini” para meio coelho; para um coelho inteiro será uma “média”.
Desta adição da cerveja resulta um molho aveludado e rescendente; junte os cubos de nabo semi-cozidos, rectifique temperos e deixe ferver mais cinco minutos, durante os quais o nabo terminará a cocção.
Sirva assim ou acompanhado por batata cozida, que muito agradece o banho de molho para fazer uma refeição deliciosa.



sábado, 15 de fevereiro de 2020

Barriga Panada



                 Barriga do porco é a “parede” gorda que forma o exterior da cavidade abdominal, a pele e várias camadas musculares entre as quais se vão entremeando outras tantas de toucinho. Por esse motivo é vulgarmente chamada “entremeada”.

Antigamente, quando os porcos eram criados devagar e abatidos bem gordos, esta entremeada era constituída quase só de gordura, com uns veiozitos de carne aqui e ali, de tal modo que era até designada por “toucinho entremeado” que, conservado na salgadeira, fornecia gordura para o ano todo. Hoje é geralmente magra, mais carne que gordura e o seu uso estende-se a todas as formas de preparação culinária, grelhada, frita, assada no forno, cozida, em guisados, conservada como bacon, etc.

Perante umas tiras de barriga, dessas que já se compram cortadas da espessura de febras e geralmente com intenção de levarem também esse destino, mas não me apetecendo nada a mim tão rotineiras preparações, deitei-me a imaginar o que lhes faria e veio-me à ideia a lembrança de paná-las. 

E porque não?

Em boa hora se experimentou!  
O estaladiço do panado combina maravilhosamente com o outro estaladiço do toucinho frito interior, já meio-torresmo. 
Comi-as como refeição mas não me custa nada a imaginá-las como entrada, simples “snack”, puxavante ou até entalada dentro de pão…

Ingredientes:

Entremeada de porco, em tiras finas
Sal e pimenta
Farinha de arroz
“Líquido” para panar
Pão ralado
Óleo para fritar
Sumo de limão

Preparação:

Retire o courato às tiras de entremeada (iria encaracolar ao fritar), estenda-as e tempere com sal e pimenta.

Prepare o líquido que vai utilizar para panar. Eu gosto de usar uma mistura de ovo e leite azedo (sourmilk/buttermilk), às vezes, como hoje, apenas ovo, leite e um pouco de iogurte grego para espessar.

Faça o panado, passando os pedaços de barriga temperada por farinha de arroz*, depois pelo líquido e por fim por pão ralado. Eu gosto muito de um panado grosso e estaladiço, pelo que faço uma segunda passagem, ou seja: farinha + líquido + pão ralado + líquido + pão ralado.

Frite em óleo quente mas não demasiado para que a gordura interna tenha também tempo para fritar.

Retire para papel absorvente e, regue imediatamente com sumo de limão.

Sirva como lhe apetecer ou mais gostar.


Nota:

 * A farinha usa-se sempre que que se vai panar algo em cru e destina-se a “secar” a peça e promover uma base à qual o ovo, leite ou outro líquido adira antes de ser passada pelo pão ralado. Pode usar-se qualquer farinha, geralmente usa-se a farinha de trigo, embora eu prefira a farinha de arroz porque é, na minha opinião a que adere melhor e faz com que a capa de panado não tenha tendência para se soltar depois de frita.