domingo, 12 de fevereiro de 2012

As Alheiras (de Calouste Gulbenkian)

                        Para além do gozo enorme que isso dá a pessoas como eu, e de se saber exactamente o que se come, fazer em casa as coisas que normalmente se compram já feitas, representa a possibilidade de chegar a níveis de excelência completamente impossíveis de atingir no produto que nos chega através da distribuição, por mais exclusivo que este seja. As próprias regras de bons procedimentos industriais e as exigências legais no que respeita à inclusão de certos químicos nos produtos alimentares manufacturados que se destinam à venda, limitam aos poucos de nós que têm ainda acesso aos produtos realmente caseiros, a possibilidade de desfrutar esses sabores únicos.

Calouste Sarkis Gulbenkian morreu em 1955 e viveu os últimos treze anos da sua vida em Lisboa, no mítico Hotel Aviz , em cuja cozinha pontificava então esse senhor incontestado da cozinha portuguesa, Mestre João Ribeiro.
Dos seus preciosos cadernos de apontamentos, que organizados por José Quitério e José Labaredas, deram origem a esse  livro* que é não só o seu  testamento culinário, como também o relato, pelo punho do mestre, da comida que se fazia na cozinha do Aviz.

Claro que nem eu, nem ninguém, poderá algum dia garantir que Gulbenkian comeu as Alheiras à Moda de Viseu que João Ribeiro fazia nas cozinhas do Aviz, mas é legítimo pensar que o tenha feito, conhecido que era o apreço que nutria pela cozinha do mestre.
E que alheiras estas, as de Mestre João Ribeiro! 
Através de um expediente genial para levar o aroma fumado para dentro da alheira sem recorrer a um fumeiro, sempre difícil de manter no meio de Lisboa, Mestre João Ribeiro criou assim condições para que qualquer de nós possa fazer as suas próprias alheiras de excelência, como eu fiz e posso garantir que não há mesmo alheira industrial, por mais “caseira” que seja a receita seguida e DOP a proveniência, que chegue aos calcanhares das alheiras de Calouste Gulbenkian!

Ingredientes:

2 kg de ossos do espinhaço
1/4 galinha gorda
Presunto magro
0,5 kg de entremeada
1,25 dl de azeite
200g de paio do lombo
1 cabeça de alhos
1 c.s. de colorau
Pão de trigo
Tripa fresca

Preparação:

Dois dias antes, deve salgar os ossos e a entremeada
e preparar as tripas, esfregando-as com sal e sumo de limão e deixando-as depois em sumo de laranja e sal.
No dia, numa panela com água e o azeite, coza todas as carnes 
até estas se começarem a soltar dos ossos.
Desfie as carnes e volte a por os ossos no caldo onde continuam a ferver.
Corta-se em fatias o pão, para um alguidar, (Mestre João Ribeiro não dá qualquer indicação sobre a quantidade de pão; pesei as carnes desfiadas e usei a mesma quantidade de pão), esmagam-se os alhos e juntam-se ao pão, bem como o colorau e malagueta, se quiser dar um toque picante às alheiras.
Rega-se então com caldo a ferver (coado), mexe-se bem e junta-se as carnes desfiadas.
Verifica-se agora o sal, embora seja provável que o sal que as carnes salgadas transportaram seja suficiente.
Lavam-se então as tripas uma última vez, em água corrente, escorrem-se e enchem-se com auxílio de um funil próprio, 
que sendo a maneira mais lenta e trabalhosa de encher uma tripa, é também aquela que está normalmente mais acessível a quem não quer tornar-se salsicheiro.
Atam-se, furam-se com alfinete de modo a que não fiquem bolsas com ar dentro da pele e dentro de algumas horas tem-se um belo monte de alheiras frescas.
Põem-se as alheiras a secar num local fresco e arejado durante três ou quatro dias,
após o que estão prontas para se comerem, como mais se gostar.
 Notas: * O Livro de Mestre João Ribeiro, pp. 111, Assírio & Alvim, Lisboa 1996.

11 comentários:

anna disse...

Ficaram lindas e aposto que superdeliciosas, seja qual for a forma de as cozinhar... ainda bem que tem pessoas como tu que mantém vivas cenas como esta de fazer alheiras ou chouriços em casa.
Mas Luís, acho que eu não conseguiria lavar as tripas...
Beijinhos.

jamsilva disse...

epá! Isto é de experimentar.
Cá voltarei para falar do resultado.
Isto é coisa para se poder congelar durante uns tempos, não?

Anónimo disse...

Óptimo aspecto.

Como as receitas do levedar.

Www.levedar.com

Unknown disse...

Definitivamente deveria ser dado maior destaque ao trabalho do Mestre João Ribeiro!!!

www.amsk.org.br disse...

A arte da cozinha simples e divinal, a poucos pertence. As linguiças enchidas em tripas são sem sombra de dúvida maravilhosas.

um abraço das cozinheiras

antónio disse...

Luis, boa tarde
Acho a receita das alheiras muito interessante. É de experimentar. Mas quem possa utilizar fumeiro como faz? Abdica das carnes fumadas? (paio do lombo e presunto)
Eu já fiz a sua receita do "chouriço mesmo caseiro" e como tenho um recuperador de calor, arranjei uma engenhoca com dois tijolos e uns tubos de ferro e quando acabamos o serão penduramos os chouriços sobre a cinza quente durante duas ou três noites e ficam impecáveis. Posso fazer o mesmo com as alheirs.

Um abraço
A. Carlos

Luís Pontes disse...

jamsilva,
Sim, ficam perfeitas se congeladas. Eu congelei as minhas e vou tirando à medida do consumo.

A.Carlos,
Francamente não sei o que lhe dizer: se por um lado deixa de haver necessidade do fumeiro, a verdade é que as carnes fumadas lá dentro lhe dão um toque excelente, até de textura. Acho que, se tivesse um fumeiro, as faria assim e dava-lhes mais um "fuminho" adicional.

Isabel Salvador disse...

Que maravilha...só tenho pena de não saber onde comprar as tripas....

Luís Pontes disse...

Belinhagulosa,
Qualquer talho que não seja de grande superfície lhe arranja, a pedido.Eu compro em Lisboa, no mercado do Benfica.
Nas feiras mensais da província costuma haver tripa seca, que se vende em meadas ou a metro e que também serve, depois de demolhar.

Isabel Salvador disse...

Obrigada LPontes pela informação vou procurar ;)...

Unknown disse...

Enquanto elas estão a secar não se estragam, ou terão de estar a temperatura muito baixa?