quarta-feira, 20 de junho de 2012

Doce de Ovos do Mosteiro da Ribeira (Sernancelhe)


                       Nisto das comidas, terreno privilegiado para as desenfreadas volúpias da gula, pecado mortal apadroado por Belzebu, se é verdade que existe um gosto puro, sensorial, palatal, o gosto que, provando, acolhe ou repele os sabores, também é verdade que a seu lado corre uma outra volúpia que, não sendo essencial ou sequer necessária para o prazer sensorial da degustação, lhe dá uma outra dimensão, esta intelectual, um mundo onde cada sabor passa a ter uma dimensão histórica, etnológica, física e química, passa a ter explicação! É a gastronomia, não “educadora” de gosto, como pretendem alguns, imodestos, mas fonte de propostas, quer na descoberta de esquecidos, quer na pura inovação e na descoberta, muitas vezes apenas por  idealização, de novos sabores.
Raros são os gastrónomos/cozinheiros, bem como os cozinheiros/gastrónomos (apesar das lamentáveis confusões que por aí grassam). Destes mundos paralelos mas não interpenetrados, profundamente simbióticos, o gastrónomo degusta e opina sobre a comida que o cozinheiro prepara e este, por sua vez, experimenta cultura, descobre aventuras milenares entre tachos e panelas, goza a dimensão gastronómica da sua comida.
Por último, o hedonista, o glutão, saboreia o melhor destes dois mundos.
Da leitura de um dos mais sérios  gastrónomos portugueses vivos, Virgílio Nogueiro Gomes, acerca de doces conventuais, das suas origens, dos abusos actuais do marketing doceiro que vai chamando “conventual” a doces que são apenas populares, dos critérios que há que respeitar para se chamar conventual a um doce, veio-me a vontade de descobrir as origens deste Doce de Ovos do Mosteiro da Ribeira*, em Sernancelhe, um convento que, longe do fausto de outros que, por serem mais uma espécie de hotel de damas fidalgas, só trabalhavam com gemas, açúcar, amêndoa e produtos da cozinha da nobreza, utilizava produtos bem mais austeros, aqui a batata, para fazer render o doce e poupar nas gemas.
Deu-me assim gozo redobrado esta 85ª Trilogia com a Ana e o Amândio, precisamente sob o tema “doces conventuais” e que me permitiu esta viagem* de gastronomia histórica que, acreditem ou não, afecta decisivamente o sabor de cada colherada.

Ingredientes:

250g de açúcar
7 gemas
2 colheres de sopa de puré de batata
Canela em pó

Preparação:

Leve o açúcar ao lume com um pouco de água e ferva até obter ponto pérola (108ºC).
Esmague para dentro deste açúcar cerca de duas colheres de sopa bem cheias de  batata cozida.
Envolva e deixe cozer por dois ou três minutos e junte então as gemas previamente passadas por um passador de rede, para reter a película.
Mexa sempre até as gemas estarem cozidas e o conjunto engrossar.
Ponha num recipiente de serviço e polvilhe com muita canela em pó.
Sirva frio.
Nota: *
"No termo de Sernancelhe, perduram num desolado abandono os restos do antigo convento da Ribeira".
Este convento franciscano terá sido fundado em 1460 e terá subsistido nesta forma até 1520, ano em que os frades franciscanos foram expulsos por Dona Maria Pereira, de Sernancelhe, parente dos Condes da Feira, que nele se instalou com as suas leigas. O convento terá assim passado dos franciscanos para as freiras "conceicionistas" de Dona Maria Pereira, primeira abadessa, donde lhe vem o nome de "mosteiro", pois tradicionalmente na região se chamava convento às casas dos frades e mosteiro às das freiras.”
(in "História de Lamego" de M. Gonçalves da Costa)
Foi neste mosteiro hoje arruinado que, no sec. XIX, com o advento da cultura da batata em substituição da alimentação predominante de castanha, que terá sido tentada esta receita que quereria imitar os cada vez mais famosos ovos moles do convento de Jesus, em Aveiro, mas aqui sem a possibilidade de gastar as assombrosas quantidades de gemas que estes levam.

                               Aspecto actual do Convento da Ribeira, em Sernancelhe

7 comentários:

Isadora disse...

que rica história! que doce delicioso e interessante!

http://deliciasdaisa.blogspot.com.br/

Paula disse...

Este doce vai ser feito cá em casa com a maior brevidade possível... ;) Obrigado por mais esta descoberta, Luís.

anna disse...

Usámos os dois batata, teve piada... Esta deve ter sido a trilogia mais gulosa, em todos os sentidos, da história da nossa tri. Para mim só tem canela a dizer chega...
Gostei de saber da diferença dos nomes mosteiro e convento que me estava a dar voltinhas na cabeça, lol!
Beijinhos.

akombi disse...

Ai como eu gosto de aqui vir!

Jorge disse...

Caro Luís Pontes,

Aproveitando para agradecer mais um post, gostava de fazer-lhe mais duas questões que me atravessaram a cabeça:

- A utilização da aletria da canja turca prende-se exclusivamente com a gestão da dispensa? A minha ignorância ficou parva quando há uns minutos atrás viu que o esparguete e a aletria têm exactamente a mesma informação nutriocional!

- A segunda totalmente fora do assunto, mas com vista a melhorar o meu entendimento de todo o ciclo relacionado com a amiga, é se segue e pode recomendar algum blog relacionado com agricultura?

Votos de uma boa semana,

Jorge

Luís Pontes disse...

Caro Jorge,
Não sou especialista em cozinha da Turquia, país que até não conheço (com muita pena minha)mas em geral a escolha de uma massa não tem a ver com gestão da despensa mas sim com opção culinária.
É normal que a informação nutricional seja igual pois ambos são feitos da mesma farinha; entre esparguete e aletria a única diferença é mesmo o .....calibre!
Não conheço blogs sobre o tema agricultura, embora siga alguns amigos nessa área, como a Herdade do Freixo do Meio, em Montemor-o-Novo que encontrará facilmente pelo nome.

Jorge disse...

Confesso que quando vi a aletria na receita, imaginei-a, tal como na sobremesa, como algo doce. Pensei então que a ideia fosse contrapor com o amargo do limão.

Obrigado pela referência e atenção mais uma vez :)