É um facto que, por vezes, mostro por aqui e executo na minha cozinha aqueles que é costume chamarem-se pratos
tradicionais ou da Cozinha Tradicional Portuguesa (CTP), o que tem levado alguns dos
meus leitores a concluir pela minha predilecção em relação a
estes pratos, o que é afinal puro engano, sendo acidental o meu gosto por eles
e não me movendo nenhum interesse especial pelas comidas antepassadas excepto
quando, aplicando a boa e velha análise pragmática, elas correspondem à melhor
variante que encontro para satisfazer aquilo que realmente me importa: os meus gosto e prazer, hoje, que a comida é para ser comida e satisfazer aqui e agora. Os meus
pratos que incidentalmente coincidem muitas vezes com os preceitos da chamada CTP, destinam-se, não
a satisfazer um qualquer anseio de revivalismo histórico ou regionalista mas
sim a satisfazer o meu apetite, como ele é hoje.
Claro que não estou com isto a
dizer que enjeito a História ou que não acho interessante o registo etnográfico de
hábitos e gestos culinários de antanho, mas do mesmo modo que, apreciando os
aviões dos anos heróicos da aviação, não me ocorreria por um momento ir ao Brasil
no avião de Gago Coutinho, que no entanto aprecio, respeito e até gosto de visitar no
Museu de Marinha, aqui ao pé de minha casa. Penso que a tradição, longe de ser
o refazer automático e canónico do que outros tempos comeram, é antes algo de
vivo e dinâmico e deve ser procurado não no que se fez mas sim no que se faz,
naturalmente com anos de inovação, experiência e criatividade que todos os dias
acontecem nas nossas cozinhas quando imitamos e também criamos e adaptamos sobre os pratos
das nossas mães, construindo assim a tradição viva. Se herdamos a casa dos
nossos avós, não herdamos aquela casa nova que eles edificaram há um século mas
sim a casa com um século de uso, transformações, adaptações às vidas de quem
nela viveu e não deixa por isso de ser na mesma a casa dos avós.
Hoje vive-se, a par de outras, uma espécie de crise
identitária, um qualquer complexo de culpa ou de vergonha pelo próprio gosto
que provoca, por um lado, a desenfreada procura de sabores e combinações
bizarras, num vórtice que tudo sacrifica, até o gosto, no anseio pela surpresa
e novidade; por outro lado, uma espécie de culto imobilista e museográfico em
que por uma razão qualquer estranha e pela primeira vez na História, se elegem
comidas de outros tempos como cânone da boa comida.
Como cogumelos, nascem confrarias
de tudo e mais alguma coisa, grupos de cidadãos animados de intuitos louváveis
mas que, saudosistas dos tempos da sua juventude, mais não fazem que
cristalizar este ou aquele prato e que rapidamente se erigem numa espécie de
Inquisição gastronómica, queimando em auto-de-fé tudo o que se desvie da
comidinha que não seja igual à que se fazia há 30, 50 ou 100 anos.
Para mim, que acho que a melhor
preservação dos tesouros gastronómicos vem da sua qualidade e não de mecanismos
proteccionistas, tradição é algo bem diferente e se vivo hoje num mundo
globalizado, a minha tradição é hoje bem mais vasta que aquela de que dispunha
quem tinha como horizontes o seu quintal. Ainda bem, já que das misturas e
miscigenações sempre resultaram cozinhas inovadoras e sabores poderosos,
veja-se o que é hoje a magnífica cozinha brasileira, a misturar sem complexos
as cozinhas portuguesa, africana, nativa brasileira, italiana, libanesa, síria,
japonesa e mais um pouco de todo o mundo e a resultar em hinos maravilhosos de
uma nova tradição que não esquece o velho feijão tropeiro e que põe farofa sem
complexos sobre qualquer prato em que ache que farofa vai bem. Não é por se
inventarem alheiras de diversos ingredientes que a alheira original vai
desaparecer, muitos anos de presuntos industriais indigentes e de chouriços
arrepiantes, não tocaram na qualidade do bísaro ou da linguiça de porco preto
alentejana, como tudo o que se tem feito por aí não fez ninguém esquecer como é
um bom pastel de nata ou de bacalhau.
4 comentários:
A cozinha tradicional portuguesa é muito rica, mas também é muito interessante a nova cozinha. Hoje em dia existe uma grande possibilidade de partilha e de conhecimento. Gosto muito muito de vir ao seu Blog, tenho aprendido muito. Obrigado por essa partilha seja ela conotada ou não com um modo de cozinhar.
Um abraço
Eu gosto muito da CTP mas também gosto muito de inventar.
Deixe-me contar-lhe uma história:
Muitoa anos atrás, eram os meus filhos adolescentos, tinha por hábito, ao fim de semana, ir à praça da Costa da Caparica (peixe e legumes imbatíveis) comprar peixinho p'ró almoço.
Nesse dia escolhi um pargo a preceito que acolitei tradicionalmente com cebola, tomate, alhos, louro, um pouco de massa de pimentão e batata nova.
Antes de ir para o forno achei que faltava qualquer "coisa".
Abri o armário e resolvi colocar-lhe em cima um ramo de alecrim.
Tirado o bicho do forno com um aspeto salivante, dividi o "petisco" pelos pratos e gritei "meninos para a mesa".
Os meus dois filhos que nunca se fizeram (nem fazem) rogados correram para a dita. Entretanto, reparando que faltava o vinho fui à cozinha buscar uma garrafa quamdo ouvi um grito "Oh pai isto está uma porcaria".
Furioso sentei-me e disse como assim.
Prova...
À primeira garfada percebi logo que o "raminho" de alecrim tinha arruinado o belo peixe.
De castigo fomos almoçar fora.
Em conclusão a "base" CTP é boa, muito boa, mas à sempre lugar para a busca de novos sabores.
Abraço
Estive a rever o meu texto e peço perdão pelo erro de palmatória.
O que que queria escrever era:
...mas hà sempre lugar...
Já agora, com toda a simpatia, parece-me que o que quereria escrever era: ...há sempre lugar...
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