quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Bola de Miranda do Douro


         Considerar como cozinha tradicional de determinada região ou povo aquela oriunda das cozinhas ricas de conventos ou dos solares senhoriais é um dos erros mais grosseiros de que enfermam as histórias culinárias europeias em geral e a história culinária portuguesa em particular, contrastando em absoluto com as recolhas que fazemos nas cozinhas indígenas ou de terceiro mundo, essas sim, espelho daquilo que essa comunidade realmente come. Já por cá, é abrir qualquer livro de culinária ou doçaria ditas tradicionais, regionais ou populares e o que foi recolhido é, na sua esmagadora maioria, um desfilar de cascatas de ovos, amêndoas e açúcar, quantidades prodigiosas de carnes, peixes e fumeiros riquíssimos, esquecendo toda a culinária do país real, pobre e rural que teria muita sorte se conseguisse comer uma qualquer proteína animal ao Domingo, um ovo, uma rodela de salpicão ou uma sardinha salgada e que fazia, isso sim, milagres culinários com um pouco de unto, umas ervas, azeite e pão.
Para esta 156ª Trilogia em que eu, a Ana e o Amândio iremos tratar o tema "Trás-os-Montes", decidi esquecer os miríficos pratos de uma abastança  desenfreada com que por vezes nos apresentam esta tão querida e tão distante província, pobre entre as pobres e cujo povo granítico pouco ou nada tem a ver com Os Pastéis de Santa Clara ou os Papos-de-Anjo de Mirandela ou sequer com postas mirandesas ou as bolas a escorrer carnes que hoje enxameiam em feiras e certames para atrair forasteiros a estas paragens mas que os transmontanos nunca fizeram ou comeram. Com papas e bolos...
A Bola de Miranda que hoje aqui trago é, pelo contrário, o retrato fiel de uma cozinha paupérrima, mesmo miserável nos anos de fome, mas que nem assim renunciava a criar com o que havia, muito do quase nada como aqui, a fazer uma festa com um pouco de massa de pão "roubado" à cozedura familiar, açúcar e canela e com pouco mais se compunha a alegria desta bola.
A bola de Miranda, depois de anos esquecida, foi ressuscitada por esforços municipais e hoje é até objecto de certificação apesar das cedências algo apressadas e pouco pensadas feitas a uma lógica de industrialização¹ de todo em todo desnecessária.
Por mim, fi-la como dantes se fazia, com massa de pão, manteiga e azeite e não me arrependi. Assim como assim, só ia fazer uma bola e não tinha clientes à espera...

Ingredientes:

Massa de pão -
500g de farinha 65
300g de água
20g de fermento fresco
7g de sal

Bola-

750g de massa de pão
1 ovo
2 gemas
0,5dl de azeite
50g de manteiga
Farinha 65 q.b.
Açúcar e canela q.b.

Preparação:

Dissolva o sal e o fermento em água morna e misture com a farinha. Deixe em repouso por 20 minutos². Enfarinhe uma superfície de trabalho e as mãos, vaze a massa sobre ela, salpique de farinha e trabalhe-a energicamente durante alguns minutos.
Tape com um pano e deixe abrigada de correntes de ar até que tenha duplicado de volume, o que acontece em cerca de uma hora.
Está pronta a sua massa de pão.
Amoleça a manteiga sem deixar que ferva, junte ao azeite e aos ovos
e misture tudo na massa levedada com o auxílio de uma batedeira de massas até estar tudo bem incorporado. Junte então a farinha que entenda necessária para que a massa ganhe corpo suficiente para ser tendida com o rolo, mas mais mole que massa de pão.
Divida a massa em várias porções pequenas que farão as várias camadas da bola e uma porção maior destinada a forrar a forma que for usar.
Deixe que estes pedaços cresçam de novo até duplicarem o seu tamanho.
Estenda o pedaço maior da massa com o rolo e o auxílio de farinha e forre com ele uma forma previamente untada de manteiga,
tendo o cuidado de não deixar qualquer rasgão na folha de massa o que deixaria sair o açúcar durante a cozedura.
Deite no fundo uma camada generosa de açúcar e polvilhe com abundante canela.
Estenda então um dos outros pedaços de massa de modo a preencher o espaço dentro da forma forrada,
volte a aplicar açúcar e canela e assim sucessivamente até esgotar todas os pedaços de massa. Torça os rebordos desta última camada junto com o forro fazendo um cordão de massa que a fecha em volta,
acabe apenas com açúcar
e leve a forno quente (180-190ºC) durante cerca de meia hora.
Retire antes da massa estar totalmente cozida, já que a Bola de Miranda é um bolo que só ganha em ficar húmido por dentro, meio mal-cozido.

Notas:
¹ Nas actuais receitas da Bola de Miranda, mesmo as debitadas pela Câmara Municipal ou pela principal fabricante certificada, a massa é feita sem o recurso à massa de pão prévia, sendo os ingredientes amassados juntos de raiz e só havendo assim uma fermentação, com a devida poupança de tempo, precioso para um negócio que vive de bolhas de actividade em ocasiões festivas bem determinadas e raras e alguma pasmaceira no resto do tempo. Claro que, apesar de compreensível, é inadmissível o sacrifício do sabor original e, mais ainda, a usurpação de um nome que designa algo bem determinado e que vem do tempo em que o tempo e não a pressa era ingrediente presente e importante na maioria das receitas.
² Ainda relacionado com o tempo devo realçar esta questão magna do repouso inicial das massas de pão (bem como os repousos de massas em geral), pormenor quase sempre encarado nas cozinhas apressadas como preciosismo dispensável e cuja falta é também quase sempre responsável por tantos fiascos e más-vontades do cozinheiro moderno em relação às massas em geral e às de pão em particular.



7 comentários:

vera disse...

Humm imagino o cheirinho na sua cozinha depois de cozinhar esta bonita "Bola" que nunca provei mas que me faz lembrar o folar de olhão :)
Bela sugestão de lanche para o inverno que se aproxima, já apetece voltar a ligar o forno!

Moira - Tertúlia de Sabores disse...

Há quase 30 anos que como dessa bola feita pelas mãos sábias das tias velhotas da minha comadre transmontana. Mesmo quando se faz a massa de raíz sem recorrer à massa de pão elas fazem sempre duas levedações. Antigamente só se fazia pela Páscoa, e ainda assim é nas casas de cada um, mas agora é moda estar à venda em pastelarias e padarias, mas nada que se compare com as que se fazem em casa. A única diferença para a do Luís é que entre cada camada de massa elas salpicam o açúcar e a canela com licor de folha de figueira. E depois disto fiquei com vontade de ir fazer uma para mim :)

cupido disse...

Foi uma das que esteve na calha :)

Vai saír, com atraso, um rancho.

Anónimo disse...

Delicioso o aspecto...
As camadas lembram-me a Bebinca, mas só por ser com camadas, tudo resto é diferente.
Bem haja por mais esta.

Maria Glória disse...

Alguns alimentos podem ser transformados em obras de arte! Posso imaginar o aroma! Belo!

majo disse...

Concordo em absoluto com o que escreveu. Tem toda a razão. É uma pena que se invente tanto!!!!

barcelence disse...

Uma vez que sou Minhota, "adopto" total e incondicionalmente o seu primeiro parágrafo.
Bem haja. Continuação.