quarta-feira, 1 de abril de 2015

Canja de Bacalhau com Poejos e Espinafres

           A reflexão que deixo lá em baixo* como nota, nasceu da dificuldade que senti para enquadrar, ou não, esta sopa-refeição maravilhosa nesse conceito abrangente que é o de Cozinha Tradicional Portuguesa.
É que se é verdade que não há qualquer tradição registada desta “canja”, não é menos verdade que ela foi inspirada directamente em pratos e sopas bem conhecidos da tradição culinária alentejana, as poejadas, as sopas de peixe, a quem buscou ingredientes e processos para se criar e que se vão encontrando a cada passo em cozinhas como as da minha aldeia alentejana, sem preocupações de ser fiel a esta ou aquela receita mas respeitando-as todas afinal pois foram e são a sua matriz, que é isso a verdadeira Cozinha Tradicional.
O resultado é um sabor nobre, ancestral, a dar aquele reconforto que as sopas antigas dão e a desmentir no palato que seja coisa acabada de nascer.

Ingredientes:

Bacalhau demolhado, lombo alto
Azeite
Alhos
Poejos frescos
Espinafres
Arroz carolino
Ovos
Sal e pimenta

Preparação:

Cubra as postas de água fria e leve ao lume médio com sal.
Quando começar a querer ferver, baixe para mínimo de modo a que não chegue a borbulhar e deixe por uns minutos. Retire as postas e reserve à parte a água onde cozeram.
Estale no azeite os alhos fatiados, sem deixar alourar.
Salpique com pimenta moída e junte a água de cozer o bacalhau. Quando ferver, incorpore então um molho de poejos frescos
ripados e um punhado de arroz carolino. Quando este estiver meio cozido junte por fim folhas de espinafre.
Sirva com um ovo que foi escalfado à parte,
de modo a que conserve a gema cremosa.
 Nota:
*Há poucas expressões mais ingratas e dadas a confusões do que “Cozinha tradicional portuguesa”. 
É que, se com “cozinha” e “portuguesa” não há muito a discutir, já o termo “tradicional” presta-se a bem diferentes interpretações, o que faz com que existam defensores da tradição que, na prática, defendem conceitos que acabam por ser quase antagónicos.
De facto, existem duas formas de entender a tradição: Uma, que devo desde já esclarecer que é a minha, entende a tradição como um contínuo em permanente mutação, a forma como chegaram até hoje os antigos costumes mas alterados por aquilo que deles fomos fazendo, neste caso nas nossas cozinhas, sendo o modo como esses velhos pratos mudaram até hoje aquilo a que chamo cozinha tradicional. Outros acham que a cozinha tradicional é algo de museográfico, os pratos como os nossos avós os comiam e que alguém em determinada época recolheu e passou ao papel, ficando desde então suspensa a sua evolução e cristalizando a sua “cozinha tradicional” em algo que é apenas a tradição suspensa num certo tempo, ou seja, tornando essa tradição numa espécie de reconstituição histórica de cozinhas, não tradicionais mas sim de antanho. É deste conceito de tradição como reconstituição histórica que nascem as confrarias deste ou daquele prato, pão ou doce que, erigidas numa espécie de inquisição certificadora, velam para nada mude, nada se experimente em relação à sacrossanta receita que a avozinha deixou.
Não se pense pelo que acabo de dizer que não gosto ou que menosprezo esse esforço de preservação histórica de receitas, muito pelo contrário como aliás se pode comprovar à saciedade pelo aqui se publicou; o que não gosto é de ver tiranias de velhas tradições a quererem impor uma censura às inovação, experiência e criatividade que, felizmente, nunca deixam de acontecer nas cozinhas de todos nós, em todos os tempos. Chama-se evolução e é o que faz com que aquilo que era tradição no tempo da minha avó tenha passado para a minha mãe com as inovações que ela lhe fez e que a minha mãe as tenha passado a mim com as suas próprias peculiaridades criativas. 
Eu, como bem sabem os que me lêem, não me coíbo de experimentar, umas vezes com bons resultados, outras nem tanto! É dessa tradição que aqui se trata.


6 comentários:

Anónimo disse...

Noutros tempos, em Lisboa, existiu um restaurante que se chamava "A Sopa" ali para os lados da Assembleia da República, cujo proprietário já vinha de um bar que se chamava "A tasca do Ti'Marciano" e foi nessa "Sopa" que comi uma bem parecida com esta "canja"...
E quanto a tradições estou absolutamente de acordo consigo, tradição sim, mas sem tolher.

Unknown disse...

Excelente o seu blog. Genial esta canja. Um abraço.

majo disse...

Gostei.
Cada colherada, seu sabor.
Para a próxima terei de pôr mais uns raminhos de poejos.
obrigada. mj

majo disse...

Gostei.
Cada colherada, seu sabor.
Para a próxima terei de pôr mais uns raminhos de poejos.
obrigada. mj

Aspásia disse...


Sim, senhor, muito boa esta receita. E o que escreve relativamente à tradição está muito certo. Às vezes, até a falta de um ingrediente que se substitui por outro ou um simples acaso e ei-la que se modifica, a tal tradição. Ora lhe conto um desses acasos, provocado por uma das minhas distrações.
Uma tardinha, dois dos meus antigos alunos passaram por minha casa para conversarmos sobre a estrutura de um trabalho e levarem uns livros de empréstimo. Eu estava a cozinhar ervilhas com ovos e convidei-os para jantar, "deitam-se mais uns ovos e faz-se um arroz branco e uma salada". E assim se fez, enquanto a conversa fluía com eles e os meus filhos. À mesa achei-os curiosos relativamente às ervilhas mas pensei "talvez pertençam ao número dos que só comem hamburguers ou bifes com batatas fritas". Até que o rapaz comentou "só a senhora, o chá dá-lhes um sabor misterioso", "um toque poético" acrescentou a moça. E eles e os meus filhos riram da minha cara admirada. Eu tinha poisado na bancada um bule com um resto de chá para gelar e, quando o molho das ervilhas precisou de um pouco de água, em vez de pegar no púcaro que tinha ao lado, peguei no bule.
Uma bela conversata deu um sabor misterioso, um travo poético às prosaicas ervilhas. Passei a cozinhá-las assim.

Ana Rita disse...

Descobri o seu blog quando andava à procura de uma receita diferente para cabeça de borrego. Como boa alentejana faço normalmente no forno só com sal ou na panela de pressão com umas cenouras e um pouco de vinho branco. Comecei a visitar o resto das receitas e fiquei encantada com esta, a minha avozinha parece que advinhou porque enviou me por um conhecido um saco de espinafres e uns belos ramos de poejos, hoje ao almoço será então canja de bacalhau ;) Parabéns pelo blog e obrigado pelas receitas :)