quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

Dom Cidrão (técnica de cristalização)


Era o “verde” e o sabor especial do antigo bolo-rei.

Quem comeu bolo-rei há mais de 50 anos, fosse ele o da Nacional ou da humilde pastelaria de bairro, lembra certamente esse sabor especial que hoje falta e que  atribui à desaparecida frescura sensorial da meninice, mas que, na verdade, é apenas  devida à quase extinção de um fruto “mágico”, na altura ainda frequente mas que tinha contra si o facto de, na prática, só servir para ser cristalizado, já que é incomestível em natureza: o cidrão!

Resultante do cruzamento entre a toranja, o limão e a tangerina, o cidrão foi sendo progressivamente abandonado à medida que as novas gerações procuravam mais rentabilidade dos seus citrinos e substituído por fruteiras de uso mais geral. Até na Ilha da Madeira, onde o cidrão cristalizado faz parte da receita do tradicional bolo de mel de cana, acabou substituído por cascas cristalizadas de outros citrinos e o seu fabrico abandonado.

Assiste-se hoje a tímidas tentativas de preservação do seu cultivo, no Norte de Portugal, levadas a cabo mais por intuitos culturais e afectivos do que por verdadeira procura, estando perdida a própria técnica de processamento, mercê do hiato verificado, fazendo-se a sua cristalização pelos processos usados para a cristalização de cascas de citrinos, o que é totalmente inadequado ao cidrão.

Fui encontrar o cidrão num local improvável, um pomar de uma casa senhorial adaptada a turismo de habitação, próximo de Ponte de Lima.

A árvore é em tudo semelhante a um limoeiro


e, auxiliado por uma boa dose de sorte e pela inexcedível gentileza do casal de produtores,  comprei alguns dos seus enormes frutos. Do processo da sua cristalização, que experimentei pela primeira vez e que correu na perfeição, deixo-vos em seguida informação detalhada.

Ingredientes:

Cidrão

Açúcar

Sal 

Preparação:

 Na aparência semelhante a um limão muito grande, é ao seccionar um cidrão que se percebe a sua grande diferença em relação a todos os outros citrinos: enquanto numa laranja ou limão toda a parte branca entre o vidrado e os gomos é formada por tecidos mais ou menos moles e esponjosos, no cidrão encontramos  uma polpa firme e lisa.


É esta polpa que, cristalizada com o vidrado aromático, vai dar origem aos pedaços grossos e firmes, característicos do cidrão cristalizado e não a uma “casca” cristalizada, como hoje geralmente se apresenta, nos raros locais onde ainda se consegue encontrar. 

Antes de passar à técnica propriamente dita, devo frisar que a cristalização de qualquer fruto é um processo lento e progressivo de substituição da água intracelular por açúcar. Não há qualquer hipótese de pressas ou “saltos” no processo, que irá decorrer em fases durante cinco a seis dias. Aqui, como aliás em toda a culinária, o factor tempo não é negociável. 

- Parta os cidrões no sentido do comprimento e retire a parte mais interna, constituída por gomos bastante secos e cheios de sementes.


Cubra estes pedaços com água a que adicionou sal, na proporção de uma colher de sopa bem cheia por cada litro de água.


Deixe nesta salmoura leve por duas horas. 

Coza os pedaços de cidrão em água sem sal, durante 15 minutos. Escorra.


Vamos tentar a cristalização através de procedimentos intuitivos, evitando o recurso a termómetros e pesa-xaropes que, por experiência própria e observação alheia, costumam ser elementos mais de confusão e atrapalhação do que de precisão. 
Iniciemos então o trabalho, preparando uma calda leve com um litro de água e um quilo de açúcar. Introduza nesta calda em ebulição os pedaços cozidos de cidrão e deixe ferver de novo e por cerca de cinco minutos. Tape o recipiente e deixe a arrefecer até ao dia seguinte.

No dia seguinte poderá notar que os pedaços de cidrão se tornaram menos brancos e mais translúcidos: é o processo de cristalização a iniciar-se.


Retire-os da calda e escorra. Leve então a calda ao lume e deixe ferver, destapado, até que o volume de líquido se tenha reduzido em cerca de um sexto. 

Introduza o cidrão, deixe ferver por mais cinco minutos e deixe a arrefecer até ao dia seguinte, onde poderá verificar que aumentou o grau de transparência do fruto.


Repita este processo por mais três ou quatro dias : escorrer o cidrão, levar a calda ao lume para reduzi-la, aumentando gradualmente o ponto de açúcar, introduzir a fruta de novo e deixar ferver por cinco minutos, arrefecer, etc.

Se neste processo verificar que deixou de ter nível de líquido para cobrir o cidrão, em vez de deixar ferver para reduzir, adicione simplesmente mais açúcar de modo a manter o fruto imerso.


Ao fim de quatro ou cinco dias deste processo, o cidrão estará totalmente translúcido e o açúcar terá o aspecto de mel (ponto de espadana, 117ºC), estando o cidrão perfeitamente cristalizado e podendo utilizá-lo assim.


Pessoalmente, prefiro que esteja com a superfície seca, pelo que o disponho sobre uma grelha, ao sol ou no forno regulado para 60ºC e porta aberta.


Pode ainda envolvê-lo em açúcar, o que facilita o armazenamento por períodos longos sem que haja aderências entre os pedaços.


 

 

9 comentários:

João disse...

Obrigado. Tinha saudades de lê-lo.

Luis Matias disse...

Obrigado pela partilha e divulgação de mais um tesouro quase perdido. Quando criança e jovem, adorava os cristalizados do bolo-rei. Hoje, deito-os directamente no lixo. Não sabia porque deixei de gostar. Agora sei. Tenho 66 anos. Boas festas,
Luis Matias

Maria Aurora disse...

Muito obrigado tenho aprendido muito com o Luis, em cultura geral e em cozinha. conheço o seu blog ainda de outros tempos, as suas receitas são comida de sucesso.

Jorge Campos disse...

É sempre um imenso prazer lê-lo e relê-lo.
Votos de um feliz natal.
Jorge Campos

M disse...

Gostava de experimentar esta técnica, haverá algum fruto ou legume que se possa comprar no supermercado com caracteristicas semelhantes em que eu poderia tentar? Obrigada pelo seu blog e boas festas!

Vitor Afonso disse...

Bela recuperação de uma lembrança de meninice! Obrigado

Laura Vieira disse...

Obrigada Sr Luis por estas partilhas de receitas. Devo confessar que só foi em 2023 que tive conhecimento do seu blog. Mas vi as suas receitas até Maio de 2008 quando o iniciou. É pura poesia...

ana conde disse...

Que bom estar de volta! Com um sabor de "antigamente"! Obrigada por todas estas partilhas!

Helena disse...

Ah! Então era isso!