Sou um perdido por sopas de peixe
e, como já várias vezes aqui deixei testemunho, quase tudo o que tenha vindo do
mar, até espinhas, me serve para uma sopa de peixe, seja um alimado, uma canja,
uma clássica com tomate e massa como esta que aqui hoje fica, às vezes até um
simples fumet sobre umas fatias de
pão duro me chega e reconforta.
Esta sopa de atum com ventresca é uma criação minha que
resultou, não de qualquer inspiração miraculosa, mas de uma reflexão profunda sobre
os vários problemas culinários que a matéria-prima de que dispunha levantava, a
saber, como arranjar um caldo de atum, essencial para fazer uma sopa com esse
nome, sem recozer os magníficos pedaços de ventresca, que se quer só levemente
cozida sem sequer ferver, sobra daqui e único atum que eu tinha?
A ventresca, aquela aba fina e gorda que cobre as vísceras
do atum, que ainda há poucos anos era rejeitada e acabava nas barricas em
salmoura, como comida de pobre, após a atenção que sobre ela se focou pelo uso
que os japoneses faziam nos pratos de sushi,
passou a ter o seu valor reconhecido e hoje as conservas de ventresca (como as
açorianas da Santa Catarina), são,
infelizmente, cada vez mais quotadas no mercado gourmet.
Claro que eu podia ter ido comprar atum fresco para fazer o caldo, seria o normal dado o que
eu queria, mas essa é a maneira previsível de cozinhar a que eu não acho gozo
nenhum; eu gosto mesmo de fazer um prato com aquilo que tenho, com as faltas,
acrescentos, modificações e incertezas que isso implica e que faz da minha
cozinha, não mais um repositório de receitas, mas algo de pessoal e por isso,
única.
Fiz assim:
Ingredientes:
1 lata de atum de conserva*
Ventresca (barriga) fresca
Cebola
Alhos
Tomate bem maduro (ou de conserva)
Massa de malagueta
Massas
Azeite
Sal
Preparação:
Uma palavra para a aquisição da ventresca, que pode ser
difícil. A ventresca é aquela parte comprida que “sobra” dos lombos de atum,
e normalmente vem pegada a estes. Por vezes, há vendedores
que não se importam de vender esta parte da peça, separada, até porque a
maioria dos fregueses até prefere o bife redondinho como um medalhão e agradece
que lhe levem o apêndice, mas com outros não e terá de comprar lombo de atum
para obter a ventresca.
No meu caso, esta ventresca foi sobra que se guardou daqui
e que, agora, fez esta sopa deliciosa.
Corte a ventresca em cubos com um dedo de largura e
tempere-os com sal grosso e pimenta preta moída no momento.
Desfaça o atum de conserva com o auxílio de um garfo e
refogue-o em azeite, com cebola, tomate maduro, fresco ou de conserva, alhos,
salsa e pasta de malagueta de acordo com o gosto pessoal.
Quando a cebola começar a ganhar alguma cor, junte então
água, mexa e deixe a fervinhar por cerca de 10 minutos, para que a água possa
extrair bem o sabor do atum. Prove e rectifique o sal, que varia consoante a
conserva de atum usada seja mais ou menos salgada.
Junte então massa (usei
cotovelos) e deixe cozer até estar a seu gosto,
Por fim, junte os cubos de ventresca,
apague de imediato a
fonte de calor, para que não chegue a ferver, tape e deixe por 5 minutos antes
de servir.
Nota: * O uso de conservas de atum
para cozinhar, levanta por vezes objecções, até por parte de pessoas com
grandes responsabilidades na nossa culinária pela exposição mediática de que
dispõem. O argumento que normalmente usam, não gostam de cozinhar o que já se
apresenta cozinhado, é apenas o espelho de um preconceito sobre que nunca
reflectiram e assim, rejeitam o uso do atum de conserva como matéria-prima, mas
usam anchovas para os seus molhos, enchidos e bacalhau, cozidos pelo sal, sol e
fumo, fiambres, feijões e toda a espécie de enlatados. O preconceito é uma
nódoa que cai sobre o melhor dos panos…
5 comentários:
Parabéns!
Finalmente o blog de culinária que vale a pena visitar e revisitar, não tanto pelas receitas que de tão bom aspecto fazem crescer água na boca mas pelo conjunto, pela prosa que quase parece poesia, pelo conhecimento partilhado, pela "facilidade" com que o difícil é tornado fácil.
A leitura deste blog, sim este é daqueles que merece ser lido e não apenas o fazer um copy/paste de algumas receitas só voltando quando se precisa de outra, é o retornar às cozinhas de antigamente onde os cheiros eram de comida feita com carinho e amor e não do ruído de um qualquer microondas a aquecer uma comida sem cheiro nem sabor mas que os palatos de hoje não sabem diferenciar porque apenas comem assim. É o voltar às mesas de refeições onde não se comia a olhar para uma televisão ou a ler/enviar mensagens de telemóvel sem dirigirem uma palavra uns aos outros, isto partindo do princípio que estão à mesa o que também já é raro. É o voltar aos jantares com amigos que se prologam em serões onde a conversa flui ao ritmo de uma música que não impede de se ouvirem uns aos outros.
Entrei por mero acaso no seu blog mas voltarei uma e outra vez para saborear tudo o que ele tem para oferecer.
Obrigada,
M.S.
Post-scriptum: Não resisto a deixar dois dos muitos poemas que me acompanham ao longo dos anos.
José Régio - Cântico negro
"Vem por aqui" - dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho os com olhos lassos,
(Há nos meus olhos ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha Mãe.
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Porque me repetis: "Vem por aqui"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?
Corre nas vossas veias sangue velho dos avós.
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
- Sei que não vou por aí!
José Régio
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Alexandre O'Neill - Há palavras que nos beijam
Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca,
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.
Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto,
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.
De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas, inesperadas
Como a poesia ou o amor.
(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído,
No papel abandonado)
Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.
Isso é uma sopa que é uma autentica refeição!
Ficou uma maravilha e bem rica.
Vim parar aqui à procura do que era ventresca (pode agradecer ao Museu de Portimão) e vou ficar cliente; nunca me teria lembrado de fazer uma sopa de peixe com atum em conserva mas é uma excelente opção, sobretudo quando não há acesso a peixe fresco assim com tanta facilidade.
Experimentei só com a conserva (a pensar no meu marido expatriado) e o resultado foi muito satisfatório; para a próxima vou à caça da ventresca!
Estive a rever o post das pataniscas de sardinha e fiquei com uma dúvida.
Fritam-se só filetes sem espinha ou frita-se com espinha(inteira)?
Obrigado
A. Carlos
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