terça-feira, 15 de novembro de 2016

Sandes de Molho (de iscas)

                 A  BSE, uma doença terrível que ficou conhecida por “doença das vacas loucas”, foi controlada através de uma enorme mortandade sanitária, graças à qual podemos hoje consumir de novo carne bovina com absoluta segurança.
Se em relação ao músculo, essa fase recente ficou apenas como uma má recordação, já em relação aos produtos viscerais, não só de bovinos como de outras espécies, ficaram várias interdições legais de comercialização que ainda hoje se mantêm e que provocaram uma verdadeira razia gastronómica em certos pratos que utilizavam miolos, tutanos, sangue, etc., cuja tradição foi assim interrompida, o que geralmente leva à sua inevitável extinção na prática culinária dos povos.
Um dos casos mais flagrantes é a proibição de comercialização do baço suíno, proibição tanto mais estúpida quanto não existe qualquer correlação entre o seu consumo e o risco de se contrair qualquer doença conhecida.
O baço é um órgão imunitário e de “limpeza”, muito sanguíneo e a alma culinária da deliciosa espessura do molho das iscas de porco, essa maravilha que povoa o nosso imaginário, até dos que não gostam de fígado, mas o molho das iscas, esse, só por si era razão para uma sandes!
Excepto para quem tenha acesso aos produtos de matanças privadas, é virtualmente impossível na cidade aceder a um baço de porco, com as nefastas consequências para quem, como eu, ainda mais que por iscas, anseia por um molho espesso e sem grânulos a embeber o pão: a sandes de molho!
A necessidade gera o engenho e sendo o molho a parte essencial de umas iscas, vamos então ver o que fazer para ultrapassar dificuldades e voltar a ter um molho fabuloso a encharcar o nosso pão.

Ao molho, então:

Ingredientes:

Fígado de porco
Vinha de alhos
Banha de porco
Sangue

Preparação:

Não vamos perder tempo com as iscas em si, que ficam para outro post. Corte-as muito finas e ponha-as, por um ou dois dias, numa vinha de alhos com os ingredientes habituais e um golpe de vinagre.
A espessura do molho final é determinada pela proteína existente na vinha de alhos, para a qual é determinante a quantidade de sangue. Como o fígado em si não liberta sangue suficiente (a menos que para uma quantidade muito pequena de molho), é necessário aumentá-la, que era o que dantes se fazia “raspando” o baço para assim libertar sangue para a vinha de alhos. Existem duas alternativas:
1º processo – Liquefaça totalmente uma isca com um pouco de vinagre, no processador ou com varinha, até estar reduzida a um creme liso e sangrento que vai então misturar na vinha de alhos, que logo toma um aspecto mais denso e espesso. Este processo implica um grande cuidado na fritura, pois fígado, mesmo desfeito, não é sangue e tende a aglomerar se não se mantiver a agitação constante.
2º processo – Junte sangue à vinha de alhos. O ideal seria sangue de porco, que não sendo proibido é ainda assim difícil de encontrar (mas consegue-se por encomenda nalguns talhos); o prático e de resultados idênticos no paladar é usar sangue de ave, desse que vem em saquetas com os frangos do campo e que em qualquer talho se pode arranjar, grátis, já que muitas pessoas não o levam quando compram a ave. Uso meio pacote de sangue para cerca de 750g de iscas.

Aqueça banha de porco e frite nela em lume muito forte, as iscas escorridas da vinha de alhos.
Quando todas as iscas estiverem fritas, junte a vinha de alhos e vá agitando a frigideira. Depressa o molho passará de líquido
a um creme espesso* e escuro
como cabidela, com o inconfundível aroma que enche a casa (e a rua!) e pede por um bocadinho de pão que o prove.
Uma sandes de molho faz-se molhando as duas partes do pão,
generosamente, no molho de iscas. Depois, é carregá-la com a carne
… ou não,
e comê-la, num processo escorrido, lambuzado e pouco bonito de se ver, mas uma sandes de molho é para comer, não é para ver!

Nota:
*Se o molho talhar, isto é, se houver separação entre o “castanho” e a gordura
ou formação de grumos, quer dizer que ferveu demais sem agitação constante, o lume foi demasiado forte ou havia demasiada banha para aquela quantidade de vinha de alhos. Não desespere! Retire a frigideira do lume, dissolva uma colher de café de amido de milho (Maizena) na quantidade de água de uma chávena de “bica”, junte ao molho talhado e leve de novo ao lume, agitando sempre, o que reconstituirá o molho.

1 comentário:

Cruz disse...

Salivei durante a leitura. Um espanto de receita!