quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Pataniscas de Bacalhau (preceitos da Bica e Madragoa)


......................... A minha avó paterna, de seu nome Amélia, nasceu na Rua da Hera, à Calçada do Combro e viveu depois, toda a sua vida, um pouco adiante, na Rua da Bica, o elevador a passar a menos de um metro da porta.
Já a materna, a Avó Estefânia, nasceu e viveu na Travessa do Pasteleiro, no coração da Madragoa.
Ambas eram exímias executantes de Pataniscas de Bacalhau!
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Não se pense, no entanto, que eram parecidas as pataniscas das avós; antigamente a vida era mesmo diferente entre bairros populares (para mais rivais), até no modo de fazer pataniscas.
As da Bica eram gordas e fôfas como sonhos, apenas o travo da salsa competia com o sabor do bacalhau; já as da Madragoa, mais delgadas, exibiam uma paleta de sabores variados, dentada a dentada, conforme se apanhava cebola, alho, bacalhau, mas nenhuma tinha qualquer ligação a essas pataniscas de café ou restaurante modernaços, a darem-se ares culturais de preservadores da patanisca-em-perigo-de-extinção e que apresentam para o efeito uns incríveis polmes gordurosos fritos em óleo cansado, uns abortos aborrachados de impossível digestão, acompanhados de Arroz de Feijão agora inventado como "acompanhamento tradicional da patanisca", como essas Casas de Fado pinocas onde se debita a turistas enlevados doses maciças de "Amália Hoje" e enormidades do género Tudo a Ver Com Showbizz Nada a Ver Com Lisboa.
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Há comidas que são como o Fado Vadio: esquivas e fugidias, não se deixam aprisionar por receitas nem render aos ditames do espectáculo, decorra ele num teatro ou numa qualquer cozinha de "autor". São os Peixinhos da Horta, umas Petingas de Escabeche, o quase extinto Fado Vadio* e, claro, as Pataniscas de Bacalhau, ex-libris das velhas tascas e cozinhas populares da cidade de Lisboa.
Pessoalmente, as minhas preferidas são as da Bica e da Avó Amélia, talvez porque foram também as da minha infância e porque se coadunam mais com o meu gosto por sabores simples, em geral.
Hoje, no entanto, fiz as duas para que ficassem aqui registados os preceitos que, esses sim, estão em risco de se perderem e, como se lê aqui ao lado no selo da Greenpeace, Extinction is Forever! .
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Ingredientes:
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1 posta de bacalhau
300g de farinha com fermento (ou sem + bicarbonato)
2 ovos
Sal e pimenta
Salsa picada
Azeite refinado para a fritura
+
1 cebola e 3 alhos, só na variante espalmada, da Madragoa
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Preparação:
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Dê uma fervura à posta de bacalhau ou aos restos já cozidos. Reserve a água.
Desfie o bacalhau ainda morno, à mão, tendo o cuidado de o deixar em pedaços pequenos (e não em fios, como para souflée ou pastéis de bacalhau). Reserve.
Numa tigela misture e bata muito bem os ovos, água de escaldar o bacalhau, farinha, sal e pimenta,
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doseando a água de modo a obter uma consistência em que, após parar de bater, dentro de poucos segundos, começam a aparecer umas bolhas do tamanho de ervilhas à superfície do polme e que demoram 2 ou 3 segundos até rebentarem.
Este aparente preciosismo é, na verdade, a chave para o tão difícil sucesso das pataniscas.
O polme deve ficar muito menos líquido que o para crepes, mas, ao deitar na frigideira deve escorrer francamente da colher, sem qualquer tipo de ajuda.
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Comece por fazê-lo mais para o grosso, esperimente fritar uma patanisca para ver o resultado, acrescente mais um cálice de água, experimente outra vez, etc. até perceber que atingiu a consistência perfeita.
Quando o polme estiver muito bem batido, (use colher de pau, não batedeira, que faz bolhas muito pequenas), junte os pedaços de bacalhau, a salsa picada grosso, prove e rectifique sal e pimenta. e deixe ficar em repouso, pelo menos uma hora.
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Na versão espalmada, junte agora a cebola e o alho, muito bem picados.
Se se atrasou e não tem essa hora, acontece, junte uma colher de sopa de sumo de limão ao polme, para activar a produção de bolhas pelo fermento químico da farinha (bicarbonato).
Fritam-se numa frigideira alta com abundante azeite bem quente,
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ou em frigideira larga com pouco azeite, na versão Madragoa,
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deixam-se cozer bem
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e põe-se a escorrer em papel absorvente.
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Bica e Madragoa, juntas na mesma mesa!
Tradicionalmente, a patanisca é servida como petisco, acompanhada de cerveja ou vinho, ou, como refeição, com arroz de tomate
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ou de grêlos e saladas de alface ou tomate.
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Nota:
* O Fado Vadio, alma da cidade de Lisboa, ainda existe por aí, embora muitos o julguem extinto e lhe tenham feito saudosistas enterros. Se o leitor destas linhas é daqueles que sente o arrepio profundo quando uma guitarra chora numa taberna de Alfama e desespera de a encontrar pois quando o faz só encontra as tais casas apinocadas para turistas, diga-me para o mail e eu digo-lhe onde está. (este é tipo de informação que, como ao acesso a paraísos naturais, só ganha por ser resguardada).
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7 comentários:

Autora do Blog disse...

Fantástica a descrição/explicação sobre as pataniscas!!!

Adoro pataniscas mas, evito comer.
Quer o arroz de tomate, quer o de grelos têm óptimo aspecto.
Super apetitosos!!!!

http://asvezescozinheira.blogspot.com

anna disse...

Tchi, que saudades das pataniscas da minha mãe... eram mais como as da Madreagoa.
Nunca consegui fazer um polme perfeito como ela...
Beijinhos.

Maria Lúcia disse...

Oi
Que bom ver delícia nesse blog.
Beijos...
Lúcia.

cupido disse...

como no chico fininho, do rui veloso:

"da cantareira à baixa, da baixa à cantareira, [ele] conhece os flipados todos de gingeira"

da Bica à Madragoa a distância é menor que a das pataniscas que apresentaste... entre as gordas e as mais "flat", com cebola e alho, vai alguma distância.

eu sou fã das duas, confesso...

mais um belo post, by luís

Paula disse...

Fico sempre encantada (e cheia de fome...) quando passo por aqui!

Paulo Leite disse...

hm... arroz de grelos. é um daqueles sabores que guardo dos tempos de menino (que ainda quase que sou, ou sou mesmo).

já não o provo há muito tempo mas ainda é, seguramente, uma das receitas de arroz da minha mãe que mais gosto. Talvez o preferido até... assim meu malandrinho.

Acho que me abriu o apetite...
cumprimentos.

Carminha disse...

Que maravilha de pataniscas. Gosto imenso das suas receitas e já aprendi muitos truques o que agradeço. Gostava de lhe perguntar se esta receita dava para quantas pataniscas mais ou menos, pois queria fazer para doze pessoas na passagem do ano. Desde já agradeço e desejo tudo de bom para 2016.

Maria do Carmo Pereira
carminha.aleixo@gmail.com