.................. Quando uma matéria prima tem, na cozinha de um povo, um peso como o do bacalhau na cozinha portuguesa, é inevitável que à sua volta se criem os mais diversos mitos, quase sempre espelho das tentativas feitas para ultrapassar algum escolho mais difícil na sua preparação.
Em Portugal o bacalhau é esmagadoramente curado em sal e semi seco, necessitando de ser reverdecido antes de estar apto a ser cozinhado. Esta operação, que se chama dessalar e é normalmente designada por demolhar, é das mais críticas na preparação do Gadus morhua e dela depende o êxito de qualquer prato de bacalhau.
Ao longo dos anos foram sendo criados mitos sobre mitos, com alguns "segredos" à mistura mas o certo é que hoje continua a ser uma tarefa geralmente mal sucedida, com o bacalhau a ficar salgado nas partes espessas e insosso nas badanas finas, mau grado os banhos de leite, congelações e outras técnicas mais ou menos arrevezadas e quase sempre inúteis.
Demolhar bacalhau é, antes de mais, uma operação regida pelas leis da Física, nomeadamente as que tratam do comportamento das soluções face às membranas porosas, a osmótica.
Na verdade, uma posta de bacalhau a demolhar é uma sucessão infinita de membranas celulares, com uma alta concentração de sal no seu interior e uma baixa concentração à sua volta, a água onde a mergulhámos. É a diferença de pressões osmóticas entre estes dois meios separados por membrana que provoca a migração da água para dentro da célula e do sal do bacalhau para a água e quanto maior for esta diferença, maior será essa migração.
Assim, deixo aqui algumas dicas para uma boa e eficaz dessalação do bacalhau da consoada.
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1º - É impossível demolhar por igual uma posta que tem uma parte grossa e outra fina.
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Existe uma solução algo rocambolesca que é pôr as postas ao alto só com a parte grossa imersa e a badana fina fora de água durante 24 horas e depois seguir por inteiro mais 12 horas. A melhor solução é mesmo usar só a parte grossa para os pratos nobres e reservar as badanas para tantos outros que não precisam de lascas.
2º - Colocar as postas sempre com a pele para cima. A pele do bacalhau é muito gorda e comporta-se como uma barreira impermeável; se estiver a fazer tampão em baixo, a água carregada de sal não consegue escoar-se para o fundo.
3º - Crie um espaço livre de bacalhau no fundo do recipiente. É a regra de ouro para um bacalhau bem demolhado e equivale à situação ideal mas quase sempre impossível que é demolhar em água corrente. O que se passa é que a água que vai ficando salgada vai também ficando mais densa e dirige-se para o fundo, onde em breve se forma uma altura invisível de salmoura que impede a correta migração do sal no sentido bacalhau - exterior, para as postas que estão no fundo. Eu uso uma altura artificial no fundo do recipiente,
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chávenas de café ou outra coisa que permita formar uma altura de água livre de cerca de 3-4 dedos,
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que vai recebendo a água mais salgada e permite uma dessalagem eficaz de todas as postas.
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4º - Respeite os tempos. 12 horas para as badanas finas, 24 horas para bacalhau médio (crescido) partes grossas, 36 horas para partes grossas de bacalhau grande (graúdo), 48 horas para as partes grossas de bacalhau de luxo (especial), sempre mudando águas de 6 em 6 horas e respeitando a "câmara de sal" indicada atrás.
5º - Use água gelada ou faça a operação no frigorífico, sempre que o peixe vá estar mais de 12 horas na água. À temperatura ambiente o peixe começa a decompor-se a partir da pele que ganha um toque crepitante ao tato e começa a ganhar um cheiro pouco fresco. Isto é mais acentuado no Verão mas é uma boa prática durante todo o ano.
6° - Como eu faço... Na verdade, ao longo de uma vida que já se vai alongando, tive o ensejo de experimentar todos estes cinco processos mais ou menos míticos (e outros tantos que não mencionei) mas que, tendo tido a importância de contribuir para uma percepção mais clara da questão, não a resolvem a contento.
Hoje, a dessalagem do bacalhau seco, deixou de ser motivo de insegurança ou ansiedade: o meu bacalhau, seja fino, médio ou alto, ou, pior ainda, misto, passou a apresentar-se com um grau de sal uniforme e sempre, na parte alta e também na fina, com o exacto teor de sal que desejo para o prato.
É então assim:
- Cubra as postas de bacalhau seco com água e deixe por 3-4 horas. Serve este primeiro "banho" para retirar o sal exterior e preparar o peixe para a dessalagem propriamente dita.
- Disponha as postas assim lavadas num recipiente, com a pele para cima, e cubra-as com água gelada, um pouco mais do dobro do seu peso, ou seja, para um bacalhau com 2 kg em seco, use 5 litros de água gelada. Ponha o recipiente no frio, e regule o aparelho para manter uma temperatura positiva mas próxima de 0°C.
NÃO MUDE MAIS A ÁGUA ATÉ AO FIM DA DESSALAGEM!
O processo irá levar entre 4 e 7 dias, durante os quais o binómio água / bacalhau irá gradualmente igualar entre si o nível de sal. Ao fim de 7 dias (bacalhau grosso) ou de 4-5 dias (bacalhau miúdo), se provar o nível de sal da água, saberá o nível de sal do bacalhau, que é nessa altura o mesmo.
12 comentários:
serviço público , obrigado , para quem não sabe e tem memória de peixe vermelho , como eu , é mais que útil uma explicação destas .
bom natal
Marcílio,
A caseína do leite liga-se ao sal e, de algum modo, "retira-o" da água. O mesmo se passa com rodelas cruas de batata ou folhas de couve na água. Mas não é mais que o que se obtém mudando a água, deixando o tal espaço para a água salgada "cair" e...... poupa-se leite!
Se usar leite completo na última água as postas vão reter alguma gordura do leite entre elas e ficam com uma ótima suculência, mas não tem nada a ver com dessalagem, claro.
Abraço e bom Natal
Fizeste-me recordar a minha avó Adelaide que foi quem me ensinou estes truques todos sobre bacalhau, desde o corte à operação de demolhar, excepto o teu 3º conselho (o da criação do espaço livre).
Claro que vou passar a usar esse também.
Obrigada e beijinhos.
Depois de ler o teu post fiquei com saudades de uma grelha de plástico que eu tinha e que deixava as postas uns centimetros acima do fundo. Como se partiu e ainda não comprei outra, lá tenho que mudar a água (muitas) mais vezes. Belo post.
Eu bem disse que este é um espaço de sabedoria! Foi muito útil ler este post, confirmar e acrescentar sugestões. Vou experimentar tudo para a próxima. Grata.
Feliz Natal, cheio de verdadeiro significado.
Já estou como o Diogo, serviço público ;)
Bom posto, bom blog... o que é que se pode querer mais? ahhh já sei! Que continue assim nos próximos anos!
Óptima lição. Fiquei, no entanto cm uma dúvida, se o bacalhau ficar com mau cheiro, que fazer ?
Tenho tido um bacalhau que depois de demolhado fica rijinho... desta vez tenho ali outro que depois de demolhado fica um pouco mais macio...
Qual a razão para esta diferença?
Obrigado pela ajuda.
Tai...gostei da explicacao, ja entendo alguns dos meus fracassos...
Há muitos mitos quanto ao bacalhau, e de uma forma geral o post tem toda a informação necessária para demolhar bem um bacalhau. Para quem tem dificuldade ou azar, ou falta de tempo, pode sempre optar por um bacalhau demolhado ultracongelado, embora com menos qualidade em termos de sabor e textura.
http://www.nfiberia.com
Como em tantos outros post, sobressai a preocupação de bem transmitir o saber, pelo que cumprimento e agradeço.
No que toca ao demolhar o bacalhau, acção importantíssima a um final feliz, tenho por experiência e não desvalorizando tudo o que foi dito enquanto acção osmótica, que o que realmente importa é sabermos o ponto final de salinidade e temperatura na água.
Assim eu faço:
1.º Em passagem rápida pela água removo o sal que acompanha o bacalhau.
2.º Manter mergulhado em água abundante todo o bacalhau (fino ou grosso)
durante 24 horas.
3.º Renovar a água (5 a 6 vezes o peso do bacalhau) e manter por mais 48 horas, tratando-se de bacalhau grosso. De quando em vez, agitar delicadamente a água e ir provando a água. Acrescentar água caso se verifique demasiado salgado. Desta forma todo o bacalhau manterá o mesmo teor de sal.
IMPORTANTE: Nunca renovar a água uma segunda vez.
25/04/20, 15:03
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