sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Cabidela de Entrecosto em Arroz


Este post é constituído por uma reflexão sobre tema de cozinha e depois pela receita proposta. Se lhe interessar apenas a receita, encontra-a cerca de dois “écrans” mais abaixo.

              Podem obter-se excelentes pratos cozinhando bem e também cozinhando mal. Isto pode parecer paradoxal ou até charla, mas é a mais pura das verdades: é para que se tenha um bom jantar sendo um mau cozinheiro que existem as receitas cheias de quantidades bem esmiuçadas, meia colher rasa das de café de pimenta preta, 135ml de água, meia colher de sopa de salsa picada e procedimentos bem precisos, 14 minutos a 175ºC seguidos de 7 minutos a 205ºC e aeração… etc.
Quando o prato está pronto, tenha sido feito à mão ou através de uma qualquer escrava mecânica, meio computorizada e meio estúpida, pode-se ter a certeza que se está perante o mesmo sabor que uma multidão de cozinheiros de receita obteve por esse mundo fora, mil vezes por dia, pelo menos. É através de receitas exatas que posso ir ao Mac da minha rua e ter a satisfação de estar a provar o mesmo sabor que é provado por um irmão desconhecido de olhos rasgados e nome esquisito, lá para Pequim. 
Cozinhar bem é ser-se o seu próprio autor e é obra de uma vida. Começa-se por seguir receitas, depois vai-se experimentando sair da linha traçada pela receita e traçamos um esboço de linha nossa, às vezes dá, outras vezes não e, muitos anos depois, começa-se a cozinhar razoavelmente. 
A sensibilidade de que é feito o ato culinário é algo com que alguns poucos sortudos nascem e é vê-los a brilhar sem quase terem de aprender e outros, quase todos, aprendem arduamente à custa de muitas experiências,  perseverança e humildade. Essa, quem a não tem, nunca aprende!. 
Eu, que nunca pequei por modéstia, começo agora, já a caminho dos temíveis anos “sessenta”, a ser um cozinheiro razoável e, se chegar a velhote mesmo e não tiver entretanto esquecido tudo, talvez venha a morrer bom cozinheiro.
Esta conversa de fim de semana é um pouco como uma justificação para os meus leitores que por vezes me notam alguma sobranceria face à chusma de “meninos” televisivos, cheios de pedigree e de cursos de alta cozinha e de estágios em grandes restaurantes e todos eles chefs apregoados daqui e dali que, depois de montarem o seu prato cheio de requinte de empratamento e de terem provado “em direto” a sua obra e soltado uns  “hmmm’s” deliciados (a moda da prova em direto seguida de um chiar de satisfação, invenção da Nigella, veio para ficar), nos deixam uma comida que, bem espremidinha, é corriqueira e banal.  Salvo bem poucas exceções, que não aparecem na televisão, os nossos chefs-estrela são como violinistas japoneses: alcançam os píncaros do virtuosismo técnico mas são incapazes de fazer o violino chorar…. ou rir.
Foi por ter meditado longamente no significado de partilhar comidas num blog desta área dita “de receitas” que, de há uns tempos, as receitas que vos deixo passaram a ser indicativas mas não quantitativas. Perguntei-me, já que raramente sigo uma receita, que significado teria estar a deixar algo que apenas faria com que alguém, algures, estivesse apenas a provar o sabor exato que eu tinha experimentado, mas, ao mesmo tempo, abdicando de ter feito, de verdade, o seu prato, a sua descoberta, feita com as nuances e pequenos gestos que fazem da cozinha de cada um de nós, uma cozinha única.
Não fazia sentido nenhum: quem cozinha bem não vem a blogs de receitas, quem cozinha mal e quer despachar uma comida qualquer vai comprar feita ao Pingo Doce ou põe a bimby a fazer e, finalmente, quem cozinha razoavelmente está na senda da descoberta e interessa-lhe um caminho, não um receituário canónico, exato e constrangedor.

Esta cabidela de entrecosto começou no arroz que o Cupido aqui trouxe e que não tinha nada a ver com cabidela. Mas quando olhei para a foto, o arroz malandro, corado pelo vinho tinto da receita dele, fizeram-me despertar a curiosidade sobre o que seria aquele sabor que me chegava lá do Norte, misturado com a untuosidade suavemente avinagrada do sangue.
Nasceu a Cabidela de Entrecosto em Arroz que, se o provasse na televisão para deslumbrar papalvos, teria direito a muitos "hmmm!, hmmm!", e sem favor.

Ingredientes:

Entrecosto ou entremeada com osso
Vinha de alhos tinta
Azeite (ou banha)
Cebola
Pimenta preta em grão ou moída na altura
Pimenta da Jamaica em grão
Chouriço muito bom
Cravinho
Salsa
Sangue fresco

Preparação:

Parta o entrecosto em pedaços e ponha-os, de um dia para o outro, numa marinada feita com vinho tinto, alhos, louro e sal.
No dia, na gordura escolhida (eu substituí a banha do Cupido por azeite)  aloure em lume forte os pedaços de entrecosto, retire a carne e estale na mesma gordura cebola picada, com as pimentas e o cravinho e algumas rodelas de bom chouriço.
Junte então de novo o entrecosto e a marinada, tape e deixe fervinhar em lume mínimo por cerca de 45m ou um pouco mais, sendo a tenrura da carne a mandar neste aspeto.
Quando a carne estiver branda, junte a salsa, faça uma estimativa da quantidade de aquosos existente na panela e junte a água necessária a perfazer 3 vezes o volume de arroz*, que introduzirá de seguida, sem lavagem.
Mexa, prove para possível retificação, tape e deixe em mínimo  por cerca de 12 minutos ou até o arroz estar cozido a seu gosto.
Junte por fim o sangue fresco** e mexa sempre até ganhar a consistência cremosa e brilhante que indica a cabidela estar pronta. Sirva sem demora.
 Notas: * Arroz Carolino, naturalmente. Chamo a atenção para algum “carolino” que está a aparecer como marca branca de algumas grandes superfícies, a baixo preço e cuja qualidade é muito insatisfatória, havendo casos em que se pode mesmo duvidar da variedade em presença. Por mais alguns cêntimos, será de adquirir o excelente arroz Carolino proveniente dos campos de Alcácer do Sal ou do Mondego (várias marcas).
** Pode usar-se qualquer sangue desde que fresco e que tenha sido misturado com um pouco de vinagre quando do abate do animal. O mais fácil de obter em meio citadino é o de frango que acompanha os frangos do campo, nuns saquinhos fechados. 

3 comentários:

Elsa disse...

Eu acho que não cozinho mal e até invento muita coisa mas gosto de vir aqui (mesmo que nunca tenha comentado)nem que seja para tirar ideias. Por isso faça favor de continuar que as suas sugestões são bem boas!

anna disse...

E eu que nem sou apreciadora de cabidelas, tenho de me render ao bom aspecto desta tua...
Também gostei da reflexão! Fez-me pensar...
Beijinhos

De cozinha em cozinha disse...

Caro Luis,
Primeiro: isto de cabidelas achava eu que só a de frango. Trazia na memória o cheiro de um arroz de sarrabulho que não consegui comer. Não sei se por na altura não ser dada a grandes experimentações gastronómicas ou se o arroz não estaria mesmo no ponto, mas não me parece que tenha sido esta 2º hipótese uma vez que todos os demais comeram e adoraram. Seja como for este fim-de-semana fui a Ponte de Lima e comecei por me sentar á mesa do restaurante e anunciar que não queria arroz de sarrabulho porque não gostava e acabei a deixar o arroz branco na travessa e comer o de sarrabulho. Assim, sendo atrever-me-ia a provar este arroz e de certeza que me ía deliciar.
Segundo: isto dos chefes estrela tem muito que se lhe diga. Sem retirar o mérito a quem o tenha, o que brilha é uma máquina montada em torno de um tema - comida - que hoje em dia atrai muitos. Depois não será muito dificil fazer brilhar como uma inovação maravilhosa aquele prato que até é banal na nossa humilde cozinha. Não me sento no sofá à espera dos programas dos chefes estrelas, mas se ao ligar a televisão estiver a passar no ecran gosto de os ver, até porque gosto de ver comida, mas faço sempre essa reflexão (que aplico também muitas vezes ao chamado "gourmet").
Terceiro: cozinhar é criar. Somar ingredientes, juntar sabores e cheiros ou partir de um prato de outrém e transformá-lo noutro que é nosso, se é que nos podemos apropriar das receitas. Isto daria motivo para outra reflexão: o dos "plágios" culinários.
E, at last, but not the least, já acompanho este blogue há algum tempo e gosto sobretudo das histórias das receitas, das explicações técnicas. Muito tenho aprendido, por isso deixo aqui meu agradecimento pela partilha que faz dos seus conhecimentos.
Carla