quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Cozido à Portuguesa

                       O cozido à portuguesa, aquilo que cada um de nós designa por “cozido”, é prato que pela sua capacidade de variação é tão livre e incapaz de se conter em dogmas e cânones, que faz torcer muito narizinho empinado com chancela gourmet e gosto pelas regras.

Quando propus o tema “cozido” para esta 62ª Trilogia com a Ana e o Cupido, fi-lo já com algum espírito de provocação e sabendo de antemão que este seria um tema onde não iria propor qualquer receita. Ai de quem precise seguir uma receita para fazer o seu cozido; ai de quem tem que se conformar apenas com o cozido trasmontano, minhoto, alentejano, beirão ou feito numas fumarolas de vulcão ilhéu, ou eleger o do Farta Pão, ou do Camponês ou da tasca do Sr. Manel, às 4ªs Feiras, não porque sejam maus cozidos, mas porque isso significa uma lacuna na sua própria história gastronómica e além dos belíssimos cozidos deste mundo, deverá sempre existir a referência do nosso cozido familiar .
Os cozidos são pratos populares que reflectem o momento, as posses, os hábitos alimentares, a estação do ano, os ensinamentos transmitidos dentro da família e o gosto de quem faz, a exemplo dos cozidos de todo o mundo, uma Olla Podrida, um Caldo gallego, uma Escudilla ou um Pot au Feu que, ao contrário do que um nacionalismo tacanho e ignorante tenta insinuar, são também pratos admiráveis e testemunhos sápidos de outras culturas e, talvez por isso mesmo, desencadeiem aqueles estranhos anticorpos em gente que só lembra o seu cantinho, a sua serra, a sua planura ou a sua ilha e que, por essa manifesta pequenez do seu mundo, estão sempre a brindar-nos com o seu queijo, enchido, sardinha ou cozido mais que bom: o melhor do mundo!
Gosto muito do meu cozido mas também dos cozidos alheios, à portuguesa ou à estrangeira, desde que sejam o cozido de quem o faz e partilha e não uma imitação do cozido de alguém, este é um prato que precisa de alma, não de receita e é porque eu ficaria muito triste se alguém me viesse dizer que tinha feito o meu cozido, que vos vou aqui mostrá-lo mas não receitá-lo; este é o cozido da minha família, que eu comi em menino, recebi-o da minha mãe que o adoptou da minha avó paterna, fiz-lhe as alterações que achei por bem para o meu gosto (suprimi morcela, feijocas e feijão verde, acrescentei abóbora) e passei-o assim, pelo exemplo do prato feito e nunca por uma receita, para as minhas filhas, que o passarão como e se assim o entenderem.
Estes são os ingredientes deste cozido, as carnes
 e os legumes,
embora possa haver aqui também variações; nas carnes, em vez de rabo pode existir chispe ou orelha (só um elemento da família come este tipo de carne mole de porco), o entrecosto pode ser entremeada magra, fixas são apenas os 3 enchidos que uso, o toucinho e o osso de tutano (de que sou guloso incorrigível).
Nos legumes, por vezes uso abóbora, outras vezes o chuchu, ou nada; a couve fixa é o repolho, variando depois a outra entre lombarda, portuguesa e tronchuda, pode ainda ter feijão manteiga ou catarino, nos cozidos de feijão e a rama dos nabos, quando estes a trazem.
O meu cozido é totalmente sincrético, isto é, é feito de modo a que todos os seus sabores se misturem e é este sincretismo sápido em que cada elemento terá o seu sabor dominante mas também um pouco de cada um dos outros que eu adoro e procuro através da cozedura em caldo comum, para grande escândalo dos doutores da gastronomia que acham precisamente o contrário, tudo bem separadinho. Ainda bem para eles que assim não ficam invejosos da minha comida (e eu também não os ia convidar), cá em casa a comida faz-se a nosso gosto e contento.
Falta falar-vos apenas de um elemento essencial e imprescindível, o arroz de sustância, feito com arroz carolino em caldo onde cozeram as carnes, enchidos, cenouras, e nabos, retirado (com uma olha gorda generosa) antes da entrada de couves e batatas.
Este é um prato do meu cozido,
embora na verdade, na mesa familiar a sério, o prato nunca esteja neste estado pois cada um de nós (e somos só 4!) tem o seu modo de comer o cozido, fases da refeição em que apenas entram alguns elementos, depois outros, enfim, coisa demasiado íntima e pessoal para caber (ou ter interesse) aqui.
E, sendo agora o tempo dele, desejo-vos belos cozidos, os vossos. 

5 comentários:

João Simões disse...

Parabéns pelo blog Luís!
Já agora, onde podemos ter acesso à sua receita para este prato?

Obrigado

Luís Pontes disse...

João Simões,
Receita em pormenor, não há.
Como linha condutora: carnes de porco salgadas de véspera, comece a cozedura pela vaca, osso de tutano e toucinho, 20m depois o porco, cenouras, nabo e chouriço,45m depois batatas e couves.Abóbora só nos últimos 5m. Farinheira e chouriço de sangue são cozidos à parte por causa do risco de rebentarem e a água de cozedura incorporada no caldo do cozido.

anna disse...

Excelente proposta a desta semana.
O teu cozido trouxe-me a novidade da abóbora... tirando esta, o rabinho de porco (é uma extremidade)e aquele enchido preto de pele cinzenta, até que o meu não é muito diferente do teu.
Às quartas feiras estou no cozido da Lorena conheces?
Beijinhos.

cupido disse...

Claro que o cozido não é canónico. Quer dizer, o livro base da bimby tem um, com a reçeitinha toda, mas esquecem-se de dizer que a cuba apenas tem espaço para um cozido individual :(

Belo cozido :)

José M Cruz disse...

Excelente texto. E principalmente uma muito boa reflexão sobre a cozinha, sobre a cultura e sobre o Homem.
José Marques da Cruz