Foi o
último dos pregões lisboetas (se não considerarmos pregão a flauta de Pan dos
amoladores) tendo sobrevivido nos bairros mais pobres e envelhecidos até ao
início dos anos 70.
Pessoalmente, vi por uma única e última vez uma velha
vendedeira de fava rica, que vendia sentada à saída da estação do Cais do
Sodré, já sem pregão e com duas panelas embrulhadas em jornais e cobertores,
ali aos seus pés, já bem há cinquenta anos.
Foto Arquivo da Câmara Municipal de
Lisboa
A fava rica ocupou, no entanto, um lugar importante no
pequeno-almoço da minha família e dos lisboetas dos bairros pobres durante a
primeira metade do século XX, contando a minha mãe, nascida na Travessa do
Pasteleiro e criada na Rua da Esperança, ambas no coração da Madragoa, que ao
pregão matinal de “fava rica!”, se descia com uma panela até à rua, panela essa
que regressava rescendente, cheia dessa espécie de sopa de fava que, após levar
um golpe de vinagre, ia ensopar o pão de véspera, dentro das tigelas que seriam
o pequeno-almoço dos meus tios-avô antes da partida para o trabalho e, porque
os tempos eram outros e duros, tinha este conduto de chegar, muitas vezes, até
à refeição da noite.
Fui atrás desta fava rica lisboeta* de antanho para esta
76ª Trilogia com a Ana e o Amândio, já que o tema é mesmo “favas” e muito tive
de “andar” até chegar a esta versão de um prato que nunca vi nem provei, aquilo
que intuitivamente (ia dizer, geneticamente) achei que elas deveriam ser, algo
entre a recordação das descrições familiares, o indicado por Maria de Lourdes
Modesto na sua CTP e mestre Manuel
Ferreira na sua Cozinha Ideal, de 1933.
Ingredientes:
Favas secas
Azeite
Alhos
Sal e pimenta
Pão duro
Vinagre (facultativo)
Preparação:
Compre favas secas, o que hoje em dia pode não ser
simples. O local mais provável para arranjar estas favas é nas lojas de
sementes** e nas de produtos para animais.
Ponha as favas de molho por, pelo menos, quinze horas, ao
fim das quais terão, como qualquer leguminosa seca, aumentado muito de volume.
Aqui, nas receitas originais, há que lhes tirar o olho
escuro e também, com um alfinete, os insectos que sempre existem na fava seca.
Descobri que estes bichinhos, chamados popularmente de
“carneiros” existiam também dentro de algumas favas não furadas e então, pelo
sim, pelo não, optei por descascar todas as favas, isto é retirar a película
externa e usar apenas os cotilédones, depois de retirar o tal rebanho que
algumas apresentavam.
Esta operação acabou por ser também muito útil pois a tal
película era coriácea e passou-se muito bem sem ela.
Ponha as favas a cozer em água abundante e sal, até se
começarem a desfazer nitidamente. Aqueça então azeite com alhos picados ou
fatiados, meio decilitro de azeite e dois dentes de alho para meio litro de
favas, sem deixar fritar e junte às favas.
Deixe ainda ferver por uns minutos e sirva bem quente
sobre pão duro,
como uma sopa, mais ou menos caldosa, conforme o gosto. Se
quiser, experimente um golpe de vinagre e até um fiozinho de azeite cru.
É uma surpresa e também uma delícia!
Notas:
* Além da fava rica lisboeta, que aqui hoje trouxe,
existem outras "favas ricas", o que não é para admirar já que fava
rica é o nome popular para a fava seca.
Muito diferentes desta, lisboeta, existe uma outra na
Madeira, que aparece muitas vezes como aperitivo para a cidra e uma outra nos
Açores, onde é prato típico de S.Miguel, pelo menos. Ambos são pratos guisados e condimentados, que, para além do nome, nada têm a ver com a antiga fava rica de Lisboa.
** Se adquirida numa loja de sementes para a lavoura,
deverá certificar-se que é comestível, ou seja, que não levou nenhum tratamento
anti-fúngico, comum nas leguminosas e outras sementes destinadas a semear. Nas
lojas de produtos para animais, já não se põe esse problema.
4 comentários:
Saudações. Embora vivendo no Algarve nasci em Lisboa há 50 e tal anos e também comi muita fava rica em casa de minha avó paterna, na Graça, vendida à porta pela tal “mulher da fava rica”. Por isso fiquei muito surpreendido pela foto das suas favas. As “minhas” tinham um tom geral castanho, talvez por, ao invés das suas terem cozido com a pele, um caldo bem mais espesso devido às que se iam desfazendo com a cozedura, temperavam-se já no prato com azeite e alho, tudo em cru, sem golpe de vinagre e embora usássemos pão para fazer “sopinhas”, nunca as comi sobre fatias de pão duro. Acompanhávamos com café coado. Sempre as comi assim e sempre assim as cozinhou o meu pai, já no Algarve, pelo que suponho também ele sempre assim as comeu, não sendo portanto uma “modernice” da mulher da fava rica que me calhou em rifa e que aliás foi sempre a mesma durante largos anos. Lisboa é um mundo e talvez noutros bairros a fava rica fosse diferente, mas na Trv. Do Olival à Graça eram assim.
Cumprimentos
Olha que, por muito incrível que pareça, não conhecia «fava rica»...
Claro que conhecia o pregão, mas no meu imaginário eram uma espécie de favas fritas...
Gostei de as conhecer!
Beijinhos.
Unknown,
Como disse eu nunca comi e segui por isso apenas recordações em segunda mão (o que a minha mãe contava) e as indicações da CTP e de Manuel Ferreira. Tem razão quanto à pele, mas aí foi mesmo opção minha já que não iria conseguir comê-las sabendo que algumas tinham bicho dentro!
Em Pedrouços, onde cresci, já nunca vi ninguém a vender, embora em Alcântara a minha mulher se lembre até inicio dos anos 70, porventura a que iria um pouco mais acima até à Rua do Olival (é a rua onde existe ou existiu o Stones, não é?)
Como disse o LP e com razão, a fava rica de S. Miguel é completamente diferente da continental. Tenho a receita no meu livro. Simplesmente, quase ninguém a chama lá de fava rica - e infelizmente quase ninguém as faz. Simplesmente favas, porque as verdes são favas guisadas. Também era vulgar dizer "favas de taberna". Pouca gente as fazia em casa. Levava-se a panela à tasca, a encher.
As favas e os torresmos de molho de fígado, assim como o polvo em vinho de cheiro, eram os petiscos típicos de puxar pelo vinho.
Na Terceira, era tradição outro petisco, as "favas de molho de unha".
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