quarta-feira, 30 de junho de 2010

Carne às Mercês

.............................. Foi através deste post de João Vasconcelos Costa no seu incontornável A Inquietude Permanente, que me apercebi que sobre os meus humildes ombros ia recair a tarefa de ressuscitar a memória de um petisco cuja receita parece ter sido esquecida por todos e que, pior, passou a ser feito como uma espécie de pica-pau, essa infame carne frita/cozida com que se engatam umas cervejas e que é às vezes chamada Carne às Mercês.
A Feira das Mercês, antiquíssimo vestígio do culto popular do Divino Espírito Santo, realiza-se nas duas últimas semanas de Outubro, numa quinta que foi casa do Marquês de Pombal na zona saloia, entre Rio de Mouro e o Algueirão.
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Quando era miúdo era um programa familiar anual que nunca falhava, mesmo quando tinha de se ir de galochas por a chuva ter tornado tudo aquilo um lamaçal.
Há anos que não vou lá, talvez mais de vinte e tremo de pensar o que as urbanizações podem e devem ter feito àqueles “campos”.
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Aí, chegávamos bem cedo, para apanharmos ainda quentes as deliciosas peras pardas cozidas e a minha mãe poder escolher e regatear as melhores nozes, amêndoas e outros frutos secos para o Natal.
Aí se provavam a primeira água-pé do ano, às vezes algum vinho novíssimo que alguém teimava em ali trazer, ainda meio-feito, as primeiras castanhas se o tempo tivesse ajudado com algum granizo precoce e, por essas nove horas já sobre longínquas brasas no fundo de bidões serrados ao meio, as frigideiras da Carne às Mercês que havia de ser comida lá para bem depois do meio-dia!
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A Carne às Mercês é um dos poucos “confitados” (há mais 4 ou 5 na cozinha tradicional portuguesa, geralmente não identificados como tal) da nossa cozinha popular e não tem nada a ver com as “carnes às mercês” das tabernas e cervejarias lisboetas, essas sim carnes de porco fritas (bem ou mal) e em tudo iguais, excepto na massa de pimentão, à carne de porco alentejana (sem amêijoas).
A técnica era precisa e exercida por mãos mestras. Logo ali se viam quais as barracas onde valeria a pena ir almoçar: quem não tivesse a carne ao lume (baixinho) às 9 da manhã era logo rejeitado na escolha e dizia-se que estes eram os “atrasados”, não valiam a pena. A carne era posta em frio, com alguma marinada em que o louro predominava e com a sua dose de banha
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e ali ficava até ao meio-dia, nem chegava a ser fervinhar, hoje diríamos que estava a ser cozinhada a baixa temperatura. Depois, eram as frigideiras de barro passadas para brasas próximas e fortes onde, em questão de minutos se evaporavam os aquosos e se formavam as deliciosas crostas então sim, fritas, e o agarrado que era desglaçado com uma colherada da marinada ou um golpe de vinho branco, mesmo antes de ir à mesa, ou ao balcão feito de uma tábua sebenta forrada a oleado e onde se comia com pão e vinho, pois claro.
Só “turistas” que eram olhados de soslaio trocista se atreviam a pedir as batatinhas fritas e pagavam-nas à parte, bem feito!
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Bom, como parece que ninguém se lembrou de fixar a receita antiga de Carne às Mercês, eu corro o risco de ser o único a poder fazê-lo e fá-lo-ei aqui que este é um petisco bom demais para se perder.
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Ingredientes:
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1kg de rabadilha de porco
1 colher de sopa de pimentão em pó
5-6 dentes de alho
5-6 folhas de louro
Sal grosso e pimenta preta
150g de banha de porco
2,5dl de vinho branco
2 colheres de sopa de vinagre (facultativo*)
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Preparação:
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Corte a carne em pedaços com a volumetria aproximada de uma noz,

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tempere-os, junte o vinho e o vinagre* e deixe por 24 horas (mas melhor por 48h) no frigorífico*.
Ponha esta carne com a marinada numa assadeira ou frigideiras de barro, por cima coloque a banha

e leve ao forno, regulado para 120ºC com calor por baixo, durante cerca de 4 horas.
Durante este tempo a carne mal fervinha e a película de banha que se forma sobre a marinada impede a sua evaporação.

Isto é essencial para que a carne vá confitando lentamente, adquirindo aquela tenrura não-desfeita que só a baixa temperatura e o tempo conferem.
Depois destas horas é tempo de finalizar: é agora que a carne já confitada vai ser frita. Passe a temperatura para 250ºC ou, mais prático, passe a assadeira para o lume do fogão, forte, e deixe que a marinada se evapore por completo e a carne fique alourada e frita por fora, mexendo sempre.

No final (cuidado para que os alhos não queimem) junte um golpe de vinho branco, agite para desglaçar os sucos caramelizados e evaporar o álcool e sirva acompanhado de um bom vinho e pão de Mafra.

Notas: * As boas práticas mandam que as marinadas se conservem no frio. Neste caso o uso de vinagre na marinada é a seu gosto e facultativo. No entanto, se, como eu, é amante daquele sabor único da carne já um bocadinho “entrada”, a chamada faisandée, deve deixar a marinada por 48 horas à temperatura ambiente. Neste caso e para evitar a proliferação de bactérias anaeróbias potencialmente nocivas, o uso do vinagre é obrigatório.

Resista à mainstream que lhe diz que toda a carne frita ou assada deve ser selada, lume forte, blá blá. De facto, as carnes feitas com a técnica de baixa temperatura não só não devem como não podem sofrer esses tratos. Aqui, cozinha-se primeiro e frita-se no fim.

7 comentários:

cupido disse...

Às vezes há com cada coincidencia. Ainda ontem li esse post do Prof. Vasconcelos Costa e fiquei com alguma curiosidade em saber exactamente como se preparavam os bons picapaus. Esta memória que apresentas parece ser excelente. Curiosamente, não difere muito da forma como se preparam as bifanas em alguns tascos daqui do Burgo, que ficam em lume muito brando e se vão tirando para o pão. Sem dúvida, a experimentar.

anna disse...

De certeza que nos cruzámos algum dia quando éramos putos... senão foi no Magoito foi nesta feira das Mercês, onde fui quase religiosamente todos os anos da minha infância.
Era uma quase romaria familiar com pais, irmão, tios e primos...
E claro que comíamos sempre a famosa carne às Mercês num barracão com chão de terra e umas mesas mal amanhadas...
Adorei que ressuscitasses a receita, nos seus pormenores todos, incluindo o do vinagre que me põe sempre algumas reticências.
Beijinhos.

jvcosta disse...

Não podia deixar de responder a isto. Que o Luís Pontes me desculpe a publicidade, vejam "Morra o pica-pau, morra, pim, viva a carne às Mercês".

moranguita disse...

que carne tao boa

Oscar disse...

E o leitão e o polvo nas brazas?
Bons tempos!
Oscar Gonzalez

Nuno Miranda disse...

Isto do forno fez-me lembrar uma história que o meu pai contava: durante a 2ª Guerra Mundial havia falta de combustíveis (gás, petróleo, etc.) pelo que se usavam técnicas de cozedura lenta, para poupar combustível: punha-se a comida numa panela, levantava-se fervura e quando em cachão, tirava-se e metia-se numa arca cheia de serradura, com um cilindro ("aro") de zinco que encaixava perfeitamente à volta do corpo da panela, evitando assim ter que escavar a serradura. Punha-se em cima da tampa da panela uma placa de cortiça e fechava-se a arca. O alimento ficava a fervinhar o dia todo e ia-se tirando à medida das necessidades, podendo a comida estar lá dois dias até começar a arrefecer, sem se queimar nunca. Substituindo a serradura e a cortiça por um bloco de esferovite, poder-se-ia utilizar de novo estes "fornos" de baixa temperatura.

Unknown disse...

Estou a fazer pela primeira vez. Já passei os 120 graus, mas passando para os 250, também de tem de meses, como se estivesse no fogão?
A carne já está bem tenrinha mas não totalmente frita e ainda não chegou aos 2 graus. Ainda fica é chamiscada antes de evaporar a marinada.
Nota. Não coloquei a marinada no prato, só a carne e a banha por cima. Está correto?