Com a voz lúcida de Maria de Lourdes Modesto algo afastada destas lides e as mortes, primeiro, em 2008, de Alfredo Saramago e agora, há dias, de David Lopes Ramos, ficou a gastronomia portuguesa a braços com uma das suas maiores crises, senão mesmo a maior da sua história.
Hoje já só resta, na prática, a voz de José Quitério que, sendo boa, é manifestamente insuficiente numa época em que se multiplicam os ataques àquilo que poderá talvez chamar-se a nossa consciência gastronómica coletiva.
Gente que pelas posições que ocupa, quer como chefs profissionais renomados, quer como gastrónomos amadores e cozinheiros esmerados que com a sua dedicação nos habituaram ao seu sentido crítico (e não estou a falar de critica a restaurantes) e capacidade de orientação, até neste espaço das cozinhas virtuais, estão hoje a sucumbir às sucessivas campanhas de desinformação normalizadora que, em última análise, visam globalizar as cozinhas, em termos de processos, técnicas e, claro, na colocação dos seus produtos globais: é a knorrização lenta e impiedosa, mascarada de facilitação da vida de cada um.
Aquilo que era ontem impensável ouvir da boca de qualquer um dos desaparecidos mestres das nossas gastronomia e culinária, como a apologia e desculpabilização dos ingredientes industrializados e instantâneos das campanhas televisivas, o incentivo ao uso das "delícias", bechaméis de pacote, todas as massas, mesmo as mais elementares, os pães pré-preparados, as batatas pré-fritas, as maioneses, as sopas de pacote e, claro, esses inomináveis "caldos" em cubo apresentados por chefs que primeiro nos convenceram que cozinhavam bem e agora, por umas moedas, confessam que afinal, cozinhavam bem porque usavam o caldinho malandreco, que não é vergonha nenhuma a gente ser despachada, a vida não está para delongas e preguiças... e é tão natural!
A isto eu digo: NÃO!!!
- Não é natural que deixemos outros decidir, num pack de temperos, o sabor da nossa cozinha!
- Não é natural que aceitemos que caldos, bouillons, fumets e outros truques da cozinha francesa, façam falta na cozinha portuguesa: tivemos mestres, milhões, em cada cozinha dos nossos ancestrais, que nos fizeram como somos e que não precisaram de Escoffiers e Brillat-Savarins para construir uma grande cozinha.
- Não é natural que aceitemos que nos digam que a nossa comida e herança cultural é uma pobrezinha porque só teve um prato adotado pela "Cuisine".
- Não é natural que finjamos não saber ler as letrinhas que vêm na composição dos produtos industrializados que nos impingem na televisão e que nos arruinam a saúde e a cultura.
- Não é natural que finjamos acreditar que os chefs de folheto de supermercado sabem mesmo cozinhar quando nos impingem as suas receitas com os produtos que os seus patrões mandam promover.
- Não é natural que tenhamos, assim, perdido a vergonha na cara!
Caldos de Galinha Knorr
Ingredientes (entre parêntesis os nomes vulgares, meus):
Sal
Gordura vegetal hidrogenada (margarina)
Gordura vegetal não-hidrogenada (óleo)
Glutamato monossódico (Aji-no-Moto)
Inosinato dissódico
Guanilato dissódico
Extrato de levedura
Amido modificado
Gordura de galinha
Cebola
Salsa
Carne de galinha 0,7% (!!!)
Aromas
Especiarias
Molho de soja
E150 (caramelo de amónia)
Dextrose (glicose)
Galato de propilo
BHA ( Butil-hidroxi-anisol)
Ácido cítrico
Uso:
Há duas* situações bem diversas, que convém separar, por uma questão de justiça:
1 - Não sabendo o que é o "cubo": Deve ser usado sempre que possível, por norma em todos os pratos, como substituto do sal, com grande vantagem sobre este, já que, como diz a informação publicitária da marca "é o segredo de todos os grandes cozinhados!".
2 - Conhecendo os ingredientes do "cubo": Usar, na proporção inversa à vergonha que se tiver na cara.
* na verdade há ainda uma terceira hipótese, a das cozinhas double-face, uma espécie de lixo que se varre para debaixo do tapete da sala imaculada quando ninguém está a olhar... mas isso já é outra coisa.
4 comentários:
Bravo!
Viva Luis... admiro teu blog justamente por exprimir aquilo que tb sinto... obgda
há dois dias que o descobri e não consigo deixar de ler.Obrigado e parabens.
Este post lembra-me quando vivia em Itália e ia a uma trattoria (optima por sinal) onde tinham uma espécie de carta de princípios:
- Aqui não se usam caldos artificiais
- Não temos congelador
- A carne é cozinhada como o cozinheiro achar melhor
Enviar um comentário