Apesar de não ser dado a
questões de genealogia, confesso que gostaria de saber como chegaram à tradição
culinária da minha família, duas receitas cuja origem açoriana é evidente,
apesar de não se conhecer qualquer contacto de familiar meu com as ilhas
atlânticas, pelo menos até onde vai a memória da história familiar. Claro que
hoje toda a informação flui e mistura-se, de modo que já mal imaginamos a que
ponto seria improvável, há um século, que receitas açorianas pudessem entrar na
tradição de uma família lisboeta.
Refiro-me ao uso da canela na
carne de porco, desconhecido em Portugal continental e ao licor de leite, ambos
da tradição açoriana e que eram de tal modo usuais na cozinha da minha infância
que só muito tarde me apercebi do inusitado da situação.
Devendo nesta 150ª Trilogia, tanto a Ana como eu e o Amândio, obedecer ao tema Açores,
escolhi por isso esse licor magnífico que os açorianos de todas as ilhas têm
pronto para o Natal mas que eu tenho para todo o ano e que, como todos os
licores fortes, melhora de ano para ano. No continente existe um licor de leite de cabra e aguardente de medronho na tradição do Baixo Alentejo que, com pequenas oscilações na técnica de preparação é muito perecido no resultado final.
Ao contrário de outros licores em
que, variando as proporções da receita se pode optar entre usar álcool ou uma
aguardente, no licor de leite tem mesmo de se usar álcool****, dado o grande volume
de água que o leite transporta, sendo obrigatório o uso de álcool alimentar,
nunca álcool sanitário que, apesar de custar um décimo do preço, é tóxico se
ingerido. Como o álcool alimentar se vende, hoje, em Portugal ao incrível preço
de €25,40 por litro, este é um licor que sai muito caro, pelo que fiz apenas
metade da receita tradicional, como é indicada na Cozinha Tradicional
Portuguesa* ou por Vasconcelos Costa no seu livro O Gosto de Bem Comer**.
Ingredientes:
0,5l de álcool alimentar a 90°***
0,5kg de açúcar
1/2 limão pequeno
1/4 vagem de baunilha
30g de chocolate
0,5l de leite do dia,
pasteurizado
Preparação:
Raspe o chocolate com uma faca
afiada de modo a ficar com aparas finas, mas não em pó. Retire o vidrado ao
limão, rejeite a parte branca que por vezes amarga e corte os gomos em pedaços.
Num recipiente de boca larga,
misture os cinco primeiros ingredientes, agite e introduza então o leite,
devagar, de modo a que faça flocos grandes, ficando com este aspecto grumoso.
Deixe assim por algumas horas.
Após as primeiras horas de
repouso, agite o frasco duas ou três vezes por dia de modo a que se dissolva o
açúcar que fica depositado no fundo, o que acontece em três a quatro dias.
Continue com a agitação diária até perfazer cerca de duas semanas, altura em
que o chocolate já se desfez parcialmente e o licor é agora uma massa
acastanhada pouco atraente.
Chegou o momento mais trabalhoso
deste licor tão simples: a filtragem.
Forre um (ou mais) funil com
papel de filtro de malha apertada, ou com papel de cozinha que funciona na
perfeição
e vá deitando esta massa espessa de onde vai ser filtrado o delicioso e cristalino licor de leite.
O licor tem uma cor de âmbar
claro e a filtragem dura por muitas horas, até dias, mas vale a pena a espera.
O líquido filtrado deve ser perfeitamente cristalino
sem qualquer vestígio de
material em suspensão, o que se consegue apenas com paciência. A clarificação
que por vezes se faz noutros licores, aqui é virtualmente impossível dada a
quantidade de massa sólida que contém.
Quando a filtragem chega ao fim,
terá nos filtros uma pasta castanha
com o mau aspecto que a foto documenta e que vou guardar, congelada, para fazer lá por alturas do Natal, um pudim tradicional que é feito com estes restos.
Notas: *Modesto, Maria de Lourdes – Cozinha Tradicional Portuguesa,
Verbo, Lisboa 1982
**Costa, João Vasconcelos – A
Arte de Bem Comer, Caminho, Lisboa 2005
*** É possível que, na farmácia,
só encontre álcool alimentar a 96º. Embora haja cálculos exactos a fazer, de um
modo prático pode baixar o grau alcoólico de 96º para 90º, juntando 0,6dl de
água a um litro de álcool a 96º (ou 15ml, uma colher de sopa, num frasco de
250c.c.).
**** Poderá usar uma aguardente branca bem forte (com mais de 40º pelo que terá de ser de destilação particular) diminuindo ainda assim a quantidade de leite. O licor obtido com aguardente deverá ser consumido rapidamente, no máximo num ano, pois oxida-se e escurece com o guardar dada a pouca graduação em álcool.
**** Poderá usar uma aguardente branca bem forte (com mais de 40º pelo que terá de ser de destilação particular) diminuindo ainda assim a quantidade de leite. O licor obtido com aguardente deverá ser consumido rapidamente, no máximo num ano, pois oxida-se e escurece com o guardar dada a pouca graduação em álcool.
13 comentários:
Acabei de experimentar a alheira assada no forno com ovo e o meu companheiro gostou muito. Obrigada pelas excelentes sugestões. :)
estou fascinado e mais que isso...tentado
Olá, podia me dizer qual a quantidade de farinha e caldo de frango que usa nas empadas de monte mor novo.obrigada
Quando à origem das receitas dos Açores, lembrar que foi gente do Alto Alentejo e Beira Baixa que fizeram o povoamento dos Açores.Tenho um amigo de Castelo de Vide, que ao perguntar-lhe se tinha ascendência açoriana (por causa do sotaque), ele me disse que os açorianos é que tinham ascendência alentejana!
Eu conheci teu blog por meio da internet, e me encantei com ele, pois encontrei um licor de leite transparente, diferente do que eu conhecia, pois a receita que um amiga minha me deu levava açúcar amarelo (louro) e aqui no Brasil, pelo menos na região onde eu moro, não se encontra. Porém eu já conhecia pois algumas vezes eu já utilizei canela para temperar a carne de porco, acredito que seja pela minha ascendência caribeña, pois minha mãe é cubana e meu pai é Boliviano.
Eu sempre gostei de cozinhar, e gosto de experimentar receitas novas, e com certeza vou experimentar teu licor, gostaria de te pedir licença para traduzir a receita deste licor para o espanhol e coloca-lo no meu blogue, dando-te as devidas referencias.
Muito Obrigado
Que Deus te abençoe e proteja hoje e sempre
Bom dia
Parabéns pelos seus blogues, dos quais sou uma seguidora com alguma regularidade.
Estou a iniciar uma actividade na área de licores e compotas. Vi a sua receita de licor de leite. Gostaria de perguntar, no caso de utilizar aguadente a 55º qual a quantidade, uma vez que na sua receita usou alcoól, que eu aqui em Braga não encontro.Se me puder responder aqui ou no mail anabela.catarino.brg@gmail.com, agradeço. Desde já obrigada. Cumprimentos
Luís, gostaria que me desse a sua opinião sobre o comentário que acabei de receber e ainda não publiquei no meu blogue e que vou aqui referir, para ter a certeza do que irei responder, depois de o publicar.
Também acha que o álccol sanitário não é igual ao alimentar? É que o comentador (identificado como Dr. House) diz que são exatamente iguais... e que não me arme em dótora!!! Agradecia que me respondesse, se não for incómodo para si.
Ah! Também faço esse licor e se quiser dou-lhe a receita do bolo que se faz com os resíduos. É muito bom!
O seu licor deve ser ótimo! Lá nos Açores fazemo-lo para tomar no natal e sempre que lá vou trago álcool alimentar! As pessoas antigas diziam que não podia ser com álcool da farmácia... por algum motivo o diziam!...
Obrigada.
Um abraço
Teresinha
UPS!!! Não tinha lido o seu texto todo... mas mantenho o pedido da sua opinião!
Olá, parabéns pelo blog, já experimentei a receita do licor de leite e ficou ótimo, será possivel adicionar a receita do pudim feito com a pasta do licor de leite?
Boa noite
Queria pedir o favor se pode publicar a receita do pudim de Natal com restos do licor de leite,
Faço licor de leite já a alguns anos porque sou da zona Marinha Grande onde nasceu a receita do licor da vaquinha e sempre tive pena de deitar os restos fora e pensava o que poderia fazer com aquilo e há pouco vi que alguém faz esse pudim, mas não encontro a receita.
Obrigada
Há uns 50 anos que faço o licor de leite, ensinado por uma açoriana ligada à minha família.Mais simples que a sua receita, com aguardente (que compro sempre de produção particular e de alambique), sem baunilha, só com canela. Ou sem canela e com o chocolate raspado, uma delícia...
Desconhecia a utilização dos restos para o tal pudim...Não dá para partilhar a receita?
Já agora, uma dica: para facilitar a filtragem do licor, uso primeiro um saco de pano cru, só depois faço segunda filtragem pelos filtros de papel ou, na sua falta, um pedaço de algodão humedecido e apertado na 'boca' do funil.Não tem o perigo de se romper o papel e estragar o trabalhinho todo ;)
Naturalmente, tenho de começar pedindo desculpas por este "ligeiro" atraso de nove anos na resposta. Só hoje, por acidente, vi a sua pergunta.
O álcool sanitário é realmente idêntico ao álcool alimentar, do ponto de vista químico, ambos são álcool etílico.
No entanto, por motivos fiscais, para evitar o imposto sobre bebidas, o álcool sanitário é desnaturado com um produto extremamente amargo e tóxico se ingerido. É impossível usar álcool sanitário para fins alimentares.
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