quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Pernil com Grelos ( Lacón con Grelos)


                          Seja por efeito de alguma parcela de sangue galego que ainda me corra nas veias, seja por efeito das muitas e boas temporadas que por lá passei, o certo é que a Galiza, pela sua língua, a sua gente e, claro, pela sua comida, é para mim a mais querida das regiões de Espanha e a única em que me sinto verdadeiramente como em casa.
Para esta 117ª Trilogia, em que eu, a Ana e o Amândio  teremos como tema “Espanha”, teria de vir da Galiza o prato a apresentar e difícil foi apenas a escolha, já que a cozinha galega tem a riqueza das cozinhas simples como, em cada país, costumam ser as das regiões mais pobres.
De entre as tartes de gemas e de Santiago, o caldo, as magníficas “empanadas”, o polvo como só lá, acabei por eleger este “Lacón com grelos”, prato de uma desconcertante simplicidade, dos dias frios dos invernos da Galiza, hoje aqui a aquecer corpo e alma, bem mais a Sul.

Ingredientes:

1 pernil
Chouriço
Batatas 
Grelos
Sal
Azeite (facultativo)

Preparação:

De véspera, ponha o pernil em água durante cerca de uma hora, depois salgue-o com sal grosso e deixe no frigorífico até ao dia seguinte.
Lave bem o pernil e ponha-o a cozer coberto de água,
durante cerca de duas horas, rectifica-se o sal, após o que se juntam as batatas, grelos e chouriços e se deixa a fervinhar até estar tudo cozido.
Serve-se muito quente, assim ou com um fio de azeite, se quiser.
Com o caldo faz-se, tradicionalmente, uma sopa com massa, muito boa.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Mexilhões fritos



                    Chegam-nos do Extremo Oriente, seja da China , seja do Vietname, congelados em metade da sua concha verde e têm a particularidade de serem verdadeiramente enormes.
Não se podendo pedir a marisco pré-cozido as amenidades húmidas do marisco fresco acabado de abrir, o tamanho soberbo destes mexilhões de “olhos em bico” fá-los ser adequados para preparações normalmente pouco usadas nos primos europeus de metade do tamanho.

Ingredientes:

Mexilhões gigantes (7-8 por pessoa)
Ovo batido
Pão ralado
Sal e pimenta
Molho de peixe ou de ostra (facultativos)

Preparação:

Coza os mexilhões em água e sal por um a dois minutos e retire-os da concha. Tempere o corpo dos mexilhões com pimenta e reserve.
Passe uma ou duas vezes por ovo batido e pão ralado 
e frite em óleo ou azeite quentes, 
até que fiquem com uma bela cor dourada.
Sirva quentes com acompanhamento a gosto.

Nota: Molho de peixe ou molho de ostra, chineses ou tailandeses, sobre os mexilhões depois de panados, podem  tornar este prato simples em algo surpreendente e original, devendo no entanto, se usar qualquer destes molhos, fazer toda a preparação prévia omitindo o sal. 

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Brandade de bacalhau


                  Aquilo a que hoje mais vulgarmente se chama  brandade  ou se se quiser em português, brandada,  é um prato relativamente simples à base de bacalhau, batatas, azeite e natas muito aparentado com o nosso Bacalhau à Conde da Guarda, que se supõe criado por mestre Manuel Ferreira e depois seguido e afamado por mestre João Ribeiro, nas cozinhas do Aviz.
Sem querer com isto retirar nada à excelência deste “Conde da Guarda” ou às brandadas modernas, com batata, o certo é que o termo descreve uma outra preparação, difícil mas de sabor e textura celestiais, oriunda da região francesa de Nîmes e depois espalhada por outras regiões francesas, bascas e catalãs e que encontramos descrita por Escoffier*, em 1903 e, antes dele, por Gustave Garlin, em 1887**.
É esta brandade original, feita com muito de braço e infinitos cuidados, com base na receita de mestre Manuel Ferreira em 1933***, mas que recompensa largamente, no palato, o investimento na preparação, que vos deixo aqui hoje, fruto do passado fim de semana chuvoso e a convidar a delícias dentro de portas.

Ingredientes:

Bacalhau
Azeite
Leite (ou natas)
Sal e pimenta
Pão frito

Preparação:

Leve o bacalhau, que deve ter sido bem demolhado, em água fria ao lume e apague este antes que comece a ferver.
Retire espinhas e raspe a pele ao de leve de modo a que saia a camada exterior e escamosa, mas mantendo a parte interior, gelatinosa.
Desfaça o bacalhau em lascas pequenas para dentro de uma caçarola,
junte pimenta e uma ou duas colheres de sopa de azeite virgem, de muito boa qualidade e baixíssima acidez**** e vá mexendo sempre com colher de pau,
energicamente, de modo a ir desfazendo o bacalhau contra as paredes do recipiente. À medida que o trabalho de mexer continua, vá juntando colheres de azeite e de leite***** (ou natas) quando a emulsão se tornar espessa demais, ambos aquecidos e sempre apenas uma de cada vez, de modo a que se vão emulsionando com as fibras do bacalhau.
Ao fim de um bom bocado, quando já estão emulsionados com o bacalhau pelo menos o seu peso em azeite e leite, a massa resultante terá um aspecto liso e branco, lembrando puré de batata.
Terá agora que provar para ver se necessita adição de sal, o que é raro, e está pronta a brandade. Tradicionalmente, deverá ser montada em cone
e ir uns minutos ao forno com calor intenso por cima, para alourar e é servida com croûtons triangulares de pão frito
e, porque se trata de um prato muito gordo, com uma verdura com alguma acidez ou amargo, como estes talins
que usei e que ligaram perfeitamente esta soberba refeição.

Notas:
A brandade é, provavelmente, a minha preparação de bacalhau preferida entre todas e não me canso de recomendá-la. Se usar todos os ingredientes aquecidos e se deixar a parte gelatinosa da pele (que "desaparece" na preparação), dará certamente algum trabalho de colher de pau mas sairá seguramente bem. Poderá ter uma pálida ideia do que é o sabor de uma brandade se conseguir imaginar algo que reúne sabores e texturas dos pastéis de bacalhau, do Bacalhau à Conde da Guarda, do Pil-Pil e do Bacalhau à Zé do Pipo. Difícil, não é? O melhor é mesmo experimentar!
* Escoffier, Gustave - Le Guide Culinaire (1903)
** Garlin, Gustave - Le cuisiner moderne, Garnier frères 1887, Paris .
*** Ferreira, Manuel – A Cozinha Ideal, Lisboa, 1933
 **** Se não dispuser de azeite de acidez 0,2 ou menos, é preferível usar um lote de azeite virgem 0,5 ou até 0,7 misturado em partes iguais com um bom óleo, por exemplo amendoim ou girassol.
***** Como a brandade é uma emulsão, quanto mais azeite adicionar, mais firme fica a brandade. O leite ou natas deve ser introduzido para corrigir essa excessiva firmeza. Apesar de, tradicionalmente, as receitas de brandade indicarem colheres alternadas de azeite e de leite, isso é claramente excessivo e, se o fizer, a sua brandade ficará demasiado líquida. Na prática, serão 3 colheres de azeite para 1 de leite ou nata líquida.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Risoto de Atum Fresco



                  Os risotos, que é como quem diz os arrozes malandrinhos dos italianos, são pratos muito simples, apesar do que se vai ouvindo a partir de certos “mestres” profissionais, sempre interessados em valorizar o que fazem, para tudo inventando mistérios, segredos e complicações.
Com os risotos (e com qualquer outro arroz), há que seguir a técnica, ter os cuidados que qualquer arroz exige em termos de ponto de cozedura e cremosidade final e ter-se-á um prato de agrado geral e a que poderemos sem medo de heresia, chamar um risotto!
Dito isto, passemos então a esta 116ª Trilogia, em que a Ana nos mandou, a mim e ao Amândio, fazer um risotto e em que eu decidi ir pelos caminhos do mar e da sua carne mais preciosa, o atum fresco.

Ingredientes:

Caldo –
Cabeça(s) e postas de peixe
Rama verde de alho porro
Cenoura
Sal e pimenta em grão
Camarões

Risoto –
Azeite
Cebola
Alho
Louro
Tomate triturado
Arroz de bago curto (ou especial para risoto)
Vinho branco
Caldo de peixe
Peixe cozido
Camarões cozidos
Lombo fresco de atum

Preparação:

Parta o atum em cubos pequenos e tempere-o com sal grosso.
Faça um caldo de peixe com os ingredientes indicados, 
retire do peixe espinhas e peles e reserve, tal como as cenouras, camarões  e o caldo depois de passado pelo chinês. Deste caldo, separe um copo que deve arrefecer e mantenha o resto quente.
Refogue em azeite a cebola e alho, picados, tomate triturado e troços de cenoura, da cozida para o caldo.
Introduza o arroz 
e deixe fritar até ficar translúcido. Usei arroz Redondo espanhol que, além de muito boa goma apresenta um bom comportamento no que se refere a resistência à cozedura, como os tradicionais arrozes de risoto, italianos (Roma, Carnaroli, Arborio, Vialone, etc.), embora se possa usar também o português carolino, se bem que requeira cuidados redobrados e um ponto de cozedura muito preciso.
Quando o arroz apresenta os bagos quase transparentes, junte então um copo de vinho e, mexendo sempre, deixe-o evaporar por completo.
Vá então adicionando conchas de caldo a ferver, 
uma de cada vez e mexendo continuamente, adicionando uma nova concha de caldo só quando a anterior estiver absorvida.
Depois de algum tempo, variável consoante a variedade que estiver a utilizar, o arroz estará cozido, isto é, já não apresenta “coração” mas o bago está fechado e firme. Chegou o momento para adicionar o peixe limpo com que fez o caldo, 
bem como os camarões, deixe levantar fervura, apague o lume* e junte os cubos de atum, previamente lavado do sal que pudesse ter ainda por fora. 
Envolva no arroz, tape e conte dois minutos.
 Adicione então o copo de caldo frio, que se destina a parar a absorção de líquido pelo arroz e sirva* de imediato.

Nota: * Nos risotos “americanizados”, o uso de queijos, quer na fase final da cozedura, fundido no arroz, quer polvilhado por cima já no prato, são obrigatórios, bem ao gosto norte-americano.
Pessoalmente, prefiro os risotos sem essa contaminação dos sabores originais do prato e sigo o procedimento popular italiano, em que o uso do queijo é facultativo.

sábado, 19 de janeiro de 2013

Bolo de Laranja, cenoura e azeite



                     É raro que apareçam bolos por aqui, apesar de os fazer com alguma frequência. Isto deve-se a que a maioria dos bolos que faço são obra do momento, receitas “a olho” que, ou não saem coisa que valha aqui figurar ou, valendo, foram feitas de impulso e não são portanto repetíveis ou sequer relatáveis por eu não saber as quantidades que usei.
Mas o bolo de hoje saiu bom, muito bom mesmo, a cumprir a sua missão de acompanhar o chá de um Sábado miserável de frio, chuva e vento e até sei como fiz, coisa rara mas que aconteceu. Hoje.

Ingredientes:

6 ovos
250g de açúcar
1 dl de azeite
2 cenouras (175g)
Raspa de duas laranjas
1 pitada de sal
200g de farinha 55
1 colher de sobremesa de fermento químico
Manteiga para untar a forma

Preparação:

Bata as gemas com o açúcar até ficar branco e fofo. Junte o azeite, as cenouras raladas, a raspa e o sal.
Mexa.
Adicione então a farinha e o fermento, bata bem e envolva ao de leve nas claras batidas em castelo firme.
Leve a forno quente (200ºC) durante cerca de 8-10m e depois para 170ºC durante mais 25-30 minutos, ou até estar cozido. Graças à cenoura crua, fica sempre húmido e fresco.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Arroz de Feijão



            É normalmente usado como acompanhamento, quer de peixe e moluscos, quer de carne, mas eu gosto mesmo é da volúpia dele só, sem outros sabores a atrapalhar a sobriedade do feijão e dos fumeiros, tudo a envolver a suavidade do arroz carolino.
Falo, naturalmente, do Arroz de Feijão.
Sempre que cozo um quilo de feijão, que é a dose habitual e que fica depois de cozida, congelada para se usar quando necessário, retiro uma pequena parte e faço um arroz de feijão só para mim, assim simples e com a humidade que mais gosto para este arroz, húmido apenas o suficiente para não ser seco, mas nada dos caldos que agora são moda seja para que arroz for, como se só o malandrinho fosse filho de gente.

Ingredientes:

Arroz carolino
Feijão cozido e seu caldo
Azeite
Cebola, alho, louro
Sal e pimenta
Salsa e rama fresca de alho
Chouriço de carne e presunto ou bacon

Preparação:

Aloure a cebola e o alho, juntamente com uma folha de louro, em azeite.
Junte depois chouriço em rodelas, presunto ou bacon, salsa, folhas verdes de alho e feijão.
Envolva tudo e adicione então uma medida de arroz carolino, 
uma medida de caldo de cozer o feijão e uma medida de água. Mexa, tape e deixe por cerca de 13-14 minutos em lume mínimo.
Sirva logo, enquanto o arroz conserva alguma humidade, mas sem escorrências.


quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Sacchettini com molho de rúcula



                   Quem me lê por aqui, regularmente, pode facilmente ficar com a ideia de que a minha cozinha é sempre feita de lentidão, de esperas, de longos apuros e, na verdade, sempre que posso “eternizar” o prazer de cozinhar e gozar depois, no prato, esse ingrediente hoje esquecido e até amaldiçoado, o tempo, claro que o faço.
Mas para mim, como para toda a gente, há mais vida para além da cozinha e muitas vezes não posso mesmo dar-me o luxo do vagar e do planeamento a longo prazo de que tanto gosto. Nesses dias, e porque eu não recorro, nunca, a essa abominação dita “fast food”, há que despachar, deitar mão de qualquer coisa e fazer um prato rápido sem cair na vulgaridade do instantâneo industrial.
É nesses dias em que tudo se resume e apressa que saem noodles no wok, alguma salada caprichosa no tempo quente, ou uma pasta fresca como estes “sacchettini” de trufa e cogumelos 
que tinha há tempos no frigorífico e que, enobrecidos com um molho de rúcula,  fizeram em dez minutos um jantar tardio e reconfortante, mesmo apropriado para ser incluído nesta 115ª Trilogia com a Ana e o Amândio, precisamente com o tema “comida rápida”.

Ingredientes:

1 pacote de massa recheada, fresca
1 molho pequeno de rúcula selvagem
1 raminho de salsa
1 dente de alho
1 noz pequena de manteiga
Raspa de noz moscada
1 colher de chá de farinha
Leite q.b.
Natas de soja (ou de leite, se preferir)
Sal e pimenta

Preparação:

Ponha os sacchettini (ou tortellini, ou ravioli) a cozer em água temperada com sal, 
o que acontece em cerca de 7 minutos.
Derreta uma noz de manteiga, tempere com pimenta e noz moscada e frite nela um alho picado e a farinha, sem a deixar escurecer. Junte leite mexendo sempre de modo  a fazer um creme com a consistência de um bechamel. Duplique o volume do creme adicionando natas de soja (ou de leite, se não se importar com calorias e colesterol), a salsa picada, 
sal e, por fim, um molho de rúcula cortada grosseiramente.
Leve ao lume até começar a borbulhar, mexendo sempre e sirva sobre a massa recheada que ficou entretanto cozida.


terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Focaccia Toscana



                           Há sabores que nos marcam para sempre e cuja primeira memória permanece indelével, fresca como se tivesse sido ontem, mesmo quando, como neste caso, já lá vão os anos de metade de uma vida.
Conheci a focaccia na Toscana, essa maravilhosa região de Itália que alberga lugares tão incríveis como Florença, Pisa, Sienna ou Lucca, corria o ano de 1977, de forma totalmente acidental.
O pão toscano tradicional é sem sal; totalmente insonso  e um choque para quem nunca provou. Hoje já há todo o tipo de pão na Toscana e é até difícil encontrar este pão, coisas da globalização, mas naquela altura, se estávamos em terra de pão insonso, era insonso e era o que havia e pronto. Em Roma sê romano, na Toscana sê toscano!
Foi ao tentar explicar ao padeiro, em Lucca, no meu italiano “abissínio” que queria pão com sal, que este me pôs à frente a minha primeira focaccia, um pão espalmado e cheio de covas, ainda quente, com um intenso aroma a azeite e salpicado de sal grosso, uma espécie de pizza de sal. Aconteceu ali amor à primeira vista; depois conheci tantas primas desta focaccia original, com alecrim, com orégãos, com rodelas de cebola ou de batata, com azeitonas ou queijo, mas nenhuma me conquistou com a força da primeira.
Quando há dias o Amândio apresentou na Trilogia de tema "alecrim", uma focaccia do dito, despertou essa nostalgia antiga, esse amor por focaccia ao mesmo tempo insonsa e salgada, a Focaccia Toscana.

Ingredientes:

Massa de pão
Azeite
Sal grosso

Preparação:

Prepare uma massa de pão com farinha misturada, metade  55 e metade 650, fermento de padeiro, massa de pão lêveda, água e 75ml de azeite (5 colheres de sopa) por cada quilo de farinha. Deixe levedar até dobrar o volume inicial.
Estenda esta massa, que deve ser um pouco mais mole que a massa para pão, num tabuleiro, deite-lhe um pouco de azeite 
e com as pontas dos dedos vá esticando a massa fazendo-lhe múltiplas covas, sempre com os dedos oleados no azeite.
Salpique com sal grosso e leve a cozer em forno quente mas não máximo (180-200ºC) durante cerca de 10-12 minutos.
Quente ou fria, pode ser comida assim ou a acompanhar tudo aquilo que o pão normalmente acompanha. Com vantagem. 
       Focaccia Toscana                        Focaccia com sal e orégãos

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Alheiras de Bacalhau


  
                  Começou em 2009 por uma brincadeira, numa empresa de Mirandela que se dedicava (e dedica) às tradicionais alheiras DOP daquela região e o certo é que o sabor conquistou pessoas, fez mercado e hoje, as alheiras de bacalhau ganharam individualidade gastronómica e um lugar crescente nas nossas mesas.
Isto tem incomodado alguns puristas da tradição museográfica, a mim não: a tradição que conta para mim é a viva e em permanente mutação, a que as pessoas hoje vão mantendo e reconstruindo no dia a dia das cozinhas; sempre foi assim, apesar dos gritos amargurados dos que, por algum estranho impulso, acham que tradição é qualquer coisa que parou num tempo que eles escolhem, 30 anos, 40 anos, 80 anos, consoante acham que tradição é a culinária da sua própria infância, a recolhida por Maria de Lourdes Modesto ou por Olleboma, sem perceberem que um prato tradicional não é o mesmo que uma reconstituição histórica e que sempre foi através da inovação e da criatividade que se passou da paupérrima cozinha dos séculos XVIII e XIX para o que é hoje a nossa tradição gastronómica e culinária.
Nas alheiras de bacalhau, a única coisa que me incomoda um pouco é precisamente o nome “alheira”. Sou muito cioso do significado de cada palavra e gostaria muito mais que estas alheiras se tivessem chamado “bacalheiras” ou coisa que o valesse. Mas o certo é que se chamam já assim, que as próprias alheiras actuais pouco ou nada têm a ver com as originais, sem porco, com que as judiarias tentavam enganar Inquisições e eu não tenho jeito nem pachorra para lutas com moinhos de vento.

Com os restos menos nobres do bacalhau natalício, meti mãos à obra, já que, para mim, há aspectos nas alheiras de bacalhau que bem podem ainda melhorar, talvez fruto da inexperiência de magarefes e salsicheiros quando o assunto passa a peixe. Fiz assim:

Ingredientes (para 3kg de alheiras):

1,5 kg de bacalhau demolhado
1 kg de pão de trigo
2 colheres de sopa de pimentão doce
3 colheres de sopa de massa de pimentão
12 dentes de alho
2 dl de azeite
Sal, piri-piri e pimenta preta, q.b.
Tripa fresca, de porco

Preparação:

Demolhe o bacalhau como de costume, escalde-o e retire peles e espinhas. 
Reserve o bacalhau e volte a ferver na mesma água as peles, espinhas e uma cebola , em lume mínimo e por cerca de uma hora. Passe pelo chinês e reserve o caldo.
Parta o pão, que deve ser de trigo e fino, para um alguidar, escalde-o com o caldo bem quente e a que juntou previamente os dentes de alho esmagados e salsa, se a quiser usar.
Junte os pimentões, o piri-piri, a pimenta e o azeite e mexa bem de modo a ficar com uma massa com a consistência de migas.
Desfaça o bacalhau num almofariz ou, mais prático, envolvendo-o num pano e sovando a boneca de modo a reduzi-lo a fios. 
Este efeito multiplicador do sabor do bacalhau e a obtenção de uma textura única, que se obtém com este desfiar, será o que tornará as suas alheiras de bacalhau definitivamente superiores a qualquer uma de compra, com o bacalhau cortado à máquina.
Incorpore o bacalhau em fios na massa, mexa bem, prove para saber que sal será (ou não) necessário, rectifique todos os temperos e faça as alheiras ensacando esta massa na tripa, preparada como se disse aqui, com auxílio de um funil, 
picando a tripa para se assegurar que extrai da alheira quaisquer bolha de ar.
Faça um fumeiro como sugeri aqui se, 
como eu, não dispuser de um a sério e defume as suas alheiras por quatro ou cinco dias, antes de consumir.

Fritas, assadas ou grelhadas, como petisco, entrada ou refeição, as alheiras de bacalhau feitas em casa apresentam esta estrutura interna única, toda ela entretecida 
de fibras de bacalhau, uma maravilha para o palato.
Para conservação longa, as alheiras são excelentes para congelação.