A reflexão que deixo lá em
baixo* como nota, nasceu da dificuldade que senti para enquadrar, ou não, esta
sopa-refeição maravilhosa nesse conceito abrangente que é o de Cozinha
Tradicional Portuguesa.
É que se é verdade que não há qualquer
tradição registada desta “canja”, não é menos verdade que ela foi inspirada
directamente em pratos e sopas bem conhecidos da tradição culinária alentejana,
as poejadas, as sopas de peixe, a quem buscou ingredientes e processos para se
criar e que se vão encontrando a cada passo em cozinhas como as da minha aldeia
alentejana, sem preocupações de ser fiel a esta ou aquela receita mas
respeitando-as todas afinal pois foram e são a sua matriz, que é isso a
verdadeira Cozinha Tradicional.
O resultado é um sabor nobre,
ancestral, a dar aquele reconforto que as sopas antigas dão e a desmentir no
palato que seja coisa acabada de nascer.
Ingredientes:
Bacalhau demolhado, lombo alto
Azeite
Alhos
Poejos frescos
Espinafres
Arroz carolino
Ovos
Sal e pimenta
Preparação:
Cubra as postas de água fria e
leve ao lume médio com sal.
Quando começar a querer ferver, baixe para mínimo
de modo a que não chegue a borbulhar e deixe por uns minutos. Retire as postas
e reserve à parte a água onde cozeram.
Estale no azeite os alhos
fatiados, sem deixar alourar.
Salpique com pimenta moída e junte a água de
cozer o bacalhau. Quando ferver, incorpore então um molho de poejos frescos
ripados e um punhado de arroz carolino. Quando este estiver meio cozido junte
por fim folhas de espinafre.
Sirva com um ovo que foi escalfado
à parte,
de modo a que conserve a gema cremosa.
Nota:
*Há poucas expressões mais
ingratas e dadas a confusões do que “Cozinha tradicional portuguesa”.
É que, se
com “cozinha” e “portuguesa” não há muito a discutir, já o termo “tradicional”
presta-se a bem diferentes interpretações, o que faz com que existam defensores
da tradição que, na prática, defendem conceitos que acabam por ser quase
antagónicos.
De facto, existem duas formas de
entender a tradição: Uma, que devo desde já esclarecer que é a minha, entende a
tradição como um contínuo em permanente mutação, a forma como chegaram até hoje
os antigos costumes mas alterados por aquilo que deles fomos fazendo, neste
caso nas nossas cozinhas, sendo o modo como esses velhos pratos mudaram até hoje
aquilo a que chamo cozinha tradicional. Outros acham que a cozinha tradicional
é algo de museográfico, os pratos como os nossos avós os comiam e que alguém em
determinada época recolheu e passou ao papel, ficando desde então suspensa a
sua evolução e cristalizando a sua “cozinha tradicional” em algo que é apenas a
tradição suspensa num certo tempo, ou seja, tornando essa tradição numa espécie
de reconstituição histórica de cozinhas, não tradicionais mas sim de antanho. É
deste conceito de tradição como reconstituição histórica que nascem as confrarias
deste ou daquele prato, pão ou doce que, erigidas numa espécie de inquisição
certificadora, velam para nada mude, nada se experimente em relação à
sacrossanta receita que a avozinha deixou.
Não se pense pelo que acabo de
dizer que não gosto ou que menosprezo esse esforço de preservação histórica de
receitas, muito pelo contrário como aliás se pode comprovar à saciedade pelo
aqui se publicou; o que não gosto é de ver tiranias de velhas tradições a
quererem impor uma censura às inovação, experiência e criatividade que, felizmente,
nunca deixam de acontecer nas cozinhas de todos nós, em todos os tempos.
Chama-se evolução e é o que faz com que aquilo que era tradição no tempo da
minha avó tenha passado para a minha mãe com as inovações que ela lhe fez e que
a minha mãe as tenha passado a mim com as suas próprias peculiaridades criativas.
Eu, como bem sabem os que me lêem, não me coíbo de experimentar, umas vezes com
bons resultados, outras nem tanto! É dessa tradição que aqui se trata.