sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Cachaço fechado no “emaille Brattopf”

Emaille Brattopf”, cuja tradução literal do alemão fica bastante estranha, algo como “panela ou cuba de torrar em esmalte”, designa afinal este maravilhoso utensílio em ferro totalmente esmaltado que faz parte dos artefactos existentes em qualquer cozinha familiar austríaca onde desempenha o papel que entre nós damos às panelas de ferro com pés, às cataplanas, às caçarolas, púcaras e demais recipientes para cozinhar fechados por uma tampa.. 
 Esta Brattopf  em ferro e com um esmalte espantoso tem ainda a vantagem de ser especialmente adaptada a cozinhar no forno e na cozinha austríaca quase tudo se pode fazer aqui, até pão!
Oferta recente da minha filha que reside em Viena, decidi estrear o meu novo “brinquedo” culinário assando nele, devagar, a peça do porco que prefiro entre todas, o cachaço, aproveitando todas as potencialidades da atmosfera húmida no que respeita à conservação de sucos, deste segundo pequeno forno dentro do grande forno.
Claro que não estou a sugerir que façam uma viagem à Áustria para adquirirem um Brattopf (mas se lá forem não deixem de trazer um), até porque se pode obter o mesmo efeito numa caçarola esmaltada que possa ir ao forno (atenção às asas).

Ingredientes:

Cachaço desossado
Sal, pimenta, alhos, pimenta da Jamaica e pimentão doce fumado
Vinho branco
Banha
Cebolas

Preparação:

O cachaço é a peça de onde se costumam cortar as costeletas do mesmo nome, também chamadas do fundo. Depois de retirado o osso, fornece uma carne suave e suculenta, cheia de veios gordos que lhe dão um sabor único. Geralmente, sai mais em conta comprar o bloco com osso a preço de costeletas do fundo e desossar depois ou mandar fazê-lo no talho, aproveitando ainda uns ossos do espinhaço para fazer um caldo ou enriquecer uma sopa.
Deixe o cachaço por vinte e quatro horas no frigorífico, mergulhado em água gelada a que adicionou sumo de limão (ou vinagre). Isto serve para que a carne se hidrate e perca qualquer excesso de sangue que contenha.
Seque a peça, tempere-a com sal, pimenta moída, alho esmagado, pimenta da Jamaica e pimentão doce fumado,
envolva-a com película plástica ou feche-a num saco e deixe no frio por mais um dia.
Lave bem a peça num copo de vinho branco, de modo a retirar os temperos que se queimariam a seguir dando mau sabor ao cozinhado e reserve o vinho da lavagem.
Seque o cachaço e sele-o numa frigideira em banha e lume muito forte, todo à volta até estar uniformemente alourado.

Forre o fundo do recipiente de forno com rodelas de cebola com um centímetro de espessura, coloque sobre elas a carne selada (sem a picar), regue com o vinho temperado,
tape e leve ao forno a 160ºC por 90 minutos, sem destapar.
O tempo no forno depende de muitos factores, de entre os quais avulta o tamanho do cachaço, que pode ir de 750g a 2kg. A partir da hora e meia de forno, deverá medir a temperatura no interior da peça com intervalos de 15 minutos, utilizando sempre o mesmo furo para não secar a carne. Retire quando a temperatura no centro do cachaço atingir 80ºC.
Haverá uma grande quantidade de líquido a rodear a carne.
Reduza-o levando-o ao lume forte numa frigideira destapada e volte a juntá-lo à carne.
Tendo ficado sempre protegida pela atmosfera húmida que se formou dentro da caçarola, a carne assou devagar e manteve o seu interior rosado e suculento.

Sirva com os acompanhamentos que mais gostar.





terça-feira, 27 de janeiro de 2015

CARAS DE BACALHAU, COM TODOS

             Depositário de tradições que remontam aos tempos difíceis em que tudo se aproveitava, o bacalhau é exemplo acabado de animal do qual tudo se pode usar, ou quase. Para além das postas, aproveitam-se ainda as caras, as línguas, o espinhaço, os sames, os fígados para fazer o tenebroso óleo de fígado de bacalhau, até cola se pode fazer a partir de bacalhau!
As caras de bacalhau são uma das partes mais esquecidas do bacalhau,
cada vez mais a consumirem-se apenas as partes nobres, obrigando a indústria a transformar em “migas” tudo o que sobeja para além das línguas, das postas altas e dos lombos do bacalhau. Correspondem à parte inferior da cabeça, sem a prega a que se chama “língua” e vai até ao nível da órbita; se dobrarmos uma cara de bacalhau veremos surgir de novo a forma familiar de uma cabeça de peixe.
Como com todas as cabeças de peixe, as caras de bacalhau não são uma comida consensual: como fígado, favas ou tutano, as caras amam-se ou odeiam-se. Sou dos que ama esta parte do “fiel amigo” e assisto com pena ao progressivo desaparecer desta iguaria das ementas da maioria das casas portuguesas.

Ingredientes:

Caras de bacalhau
Sal
Cenouras
Batatas
Cebolas
Couve verde
Ovos
Alhos
Pimenta preta, azeite e vinagre

Preparação:

As caras de bacalhau vendem-se em salmoura seca, o que significa que foram salgadas e semi-desidratadas pelo sal mas não passaram por secagem ou sol.

Como com todas as salmouras, necessitam de uma dessalagem prolongada, maior ainda que a necessária para postas, pelo que é aconselhável aproveitar o tempo frio para fazê-lo ou dessalar dentro do frigorífico até que as bochechas percam o excesso de sal, processo difícil por estas se encontrarem parcialmente dentro do osso.
A cozedura de uma cara de bacalhau é ainda mais determinante para o resultado final do que acontece com as postas. Aqui, é absolutamente interdita qualquer fervura, que tornaria fibrosa a carne suculenta das bochechas. Pode fazê-lo de dois modos: ou utiliza a água onde cozeu os acompanhamentos, colocando as caras sobre estes mas já com o lume apagado e deixa por alguns minutos, ou coze as caras à parte, em água a partir de fria, apagando o lume antes de se começar a esboçar qualquer vestígio de fervura. Pessoalmente, prefiro este método separado, mas o resultado não difere sensivelmente.
Depois, com um dente de alho picado, regado de bons azeite e vinagre, é gozar este festim, o melhor de dois mundos: num só prato tem o amado bacalhau e ao mesmo tempo uma cabeça de peixe. Que mais se poderia desejar?



quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

BUTELO COM CASULAS

        Viveu até há poucos anos escondido nos fumeiros gelados de Trás-os-Montes, no meio de outros ilustres desconhecidos, ceboleiras, chouriças de abóbora, sangueiras, azedos, unto fumado, que quando a pobreza é muita as inventiva e criatividade crescem e disfarçam de carne aquilo que há. No caso do butelo, foram ossos e pouco mais o que encheu o bucho ou a bexiga do bicho, o suficiente para o transformar na alma de um dos pratos emblemáticos da cozinha popular histórica, tradicionalmente comido com as casulas por alturas do Carnaval. Isto há muitos anos, já que quer butelo quer casulas chegaram a estar virtualmente extintos por falta de procura, a par de tantos outros, dos cuscus e de outras realidades rurais que não resistiram à desertificação do Nordeste de Portugal. Ressuscitados a partir do interesse citadino por novidade e pelas gastronomias perdidas e exóticas, bem como pelo esforço de sobrevivência, por expansão de mercados, de industrias locais, é hoje possível encontrar butelos à venda bem longe da sua área tradicional, embora a sua lógica de enchido pobre esteja definitivamente perdida, custando um butelo que, relembro, são ossos ensacados, mais caro que a maioria dos enchidos de… carne.
Os pratos assim ressuscitados, apesar da tendência para serem chamados  tradicionais, são na realidade recriações históricas, assistindo-se hoje a um refazer pela mão experimentada de chefes e gastrónomos do que poderia ter sido a sua evolução tradicional,  embora neste processo se tenda para o caminho  mais fácil de enriquecimento do prato, que é por norma despojado da sua rudeza telúrica, simples e por vezes quase estóica e embelezado ao gosto mais dado a mimos que a asperezas dos que na realidade, hoje, os comem.
O butelo que hoje aqui vos deixo, bem como as casulas que o acompanham, comprei-os à minha fornecedora de enchidos daquelas paragens, D. Aida Pires, na sua banca no Mercado Municipal de Bragança. Para a execução deste cozido, pois de um cozido se trata, optei por uma versão equidistante entre o mais histórico (e estóico) constituído apenas pelo butelo, por casulas e por batatas e as versões mais adaptadas, com várias carnes, enchidos e legumes.
Saiu almoço memorável, que se prolongou por outras refeições através de uma sopa “de panela” que, sugestão de D. Aida, constituiu alento para arrostar com um Inverno todo de frio, neve e Trás-os-Montes.

Ingredientes:

1 Butelo
Casulas (ou cascas)
Chouriço de carne
Entrecosto
Batatas
Sal
Azeite

Preparação:

As casulas são feijões que foram apanhados ainda verdes mas já formados e conservados por secagem assim na vagem. Têm por isso que ser reverdecidos, o que se faz demolhando-os em água fria por doze horas, normalmente da noite para o dia seguinte.

O butelo é este grande enchido de aspecto bizarro, todo marcado pelos ossos que contém,

pesa entre 800g e 1,3kg e coze por cerca de uma hora e meia, duas horas se for dos muito grandes, em água, juntamente com as carnes previamente salgadas e o  chouriço. As casulas, também chamadas cascas, depois de demolhadas cozem em tempos muito variáveis consoante a variedade de feijão usado, o melhor é mesmo ir provando e poderá contar com um mínimo de quarenta e cinco minutos e um máximo de hora e meia. 
Em relação ao recipiente a usar, as opiniões dividem-se, aliás como para os outros cozidos: de um lado os que acham que se deve cozer cada ingrediente (ou pelo menos cada grupo) separadamente, do outro os que gostam mesmo é da miscigenação de sabores entre as carnes e os vegetais, uns a temperarem os outros. Como em tudo o que se relaciona com comida e culinária, eu sou dos que acha que a melhor maneira de fazer seja o que for é aquela que faz a comida como nós mais gostamos dela e que bem tolo é quem come pelo gosto de outros. Eu gosto mesmo dos sabores misturados num cozido e neste foi o que fiz; esta posição não é melhor nem pior do que qualquer outra, é apenas o meu gosto, que é quem manda na comida que se destina a ser comida por mim. Faça o leitor como o seu gosto lhe pedir.
Cozi portanto o butelo, o entrecosto e o chouriço durante uma hora, após o que juntei as batatas por mais vinte e cinco minutos. Tinha cozido previamente as casulas porque não sabia ao certo quanto tempo demorariam e juntei-as ao cozido só no fim, fervinhando mais cinco minutos em conjunto para partilharem sabores e aromas entre si. Estava pronto o Butelo com Casulas

que deu este prato memorável, a pedir um fio do excelente azeite transmontano, para ser comido devagar, devagar…


Notas:
Recomendo que espere até ao fim para rectificar o sal; quer as carnes, quer o butelo, acabam geralmente por fornecer o sal necessário, sendo às vezes preciso juntar até um pouco mais de água para que o caldo não fique salgado.
Por vezes usa-se juntar também uma cebola. Não usei porque não acho que “case” bem.

A confecção deste cozido gera um caldo espantoso, que é um crime deitar fora. Com umas folhas de couve, alguma cenoura ou abóbora, restos desfiados das carnes que tenham sobejado e mais uma boa fervura, fica feita uma “sopa de panela” que, com umas massas ou sobre umas fatias de pão duro, fazem outra refeição inesquecível.

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

O OUTRAS COMIDAS VOLTOU!

O Outras Comidas voltou! Comigo.

Claro que podia arranjar aqui umas boas desculpas, solenes como aquelas que arranjei quando acabei com ele (já foi em 2013!), para justificar agora o regresso, mas não: o Outras Comidas regressa porque eu morria de saudades dos meus petiscos, das nossas conversas, dos vossos comentários, que o que por aqui se disse e conversou com mútuo proveito ao longo de tantos anos é afinal bem diferente, e bem melhor, do que os “likes” apressados que se vão deixando nas redes sociais por onde entretanto fui passeando.

Para alguns que só agora vão chegar, será uma novidade; para a maioria será apenas um retomar de velhas conversas; para mim será um renovado e enorme prazer!


Até já.