sábado, 23 de janeiro de 2016

A Gastronomia e a gastronomia



“Não sou ninguém para julgar. Só sei que sinto uma antipatia inata pelos censores, os árbitros… mas, acima de tudo, são os redentores quem mais me incomoda.”  Corto MalteseTango*, 1985.


                 Existem dois tipos de gastrónomos e, logo, duas gastronomias. Apesar da homonímia e de, vagamente, se andar à volta do tema das comidas, fica por aqui qualquer semelhança entre elas e, para que se destrincem possíveis confusões, vou tratar uma com a maiúscula que bem merece e a outra com a minúscula que nem chega a merecer.

Para não começar por assuntos tristes, vou primeiro abordar essa que Albino Forjaz de Sampaio chamou "Volúpia - A 9ªArte, a Gastronomia", cuja nobilíssima missão de procura, de estudo, ao encontro do prazer e volúpia com que gostamos de adornar o biológico acto de nos alimentarmos e onde, entre muitos outros, nomes como Virgílio Gomes, Alfredo Saramago, Maria de Lourdes Modesto ou Manuel Bento dos Santos que, através do estudo e de um continuado exercício de experiência e do gosto, nos abrem portas e mostram caminhos, propostas e novidades entre aquilo que à nossa volta vai sucedendo às comidas e a História que moldou o que hoje somos em termos gastronómicos, caso dos dois primeiros, ou enveredando pelo caminho da experimentação culinária pura, caso de Manuel Bento dos Santos, um dos poucos que alia ao saber gastronómico uma forte componente culinária prática, uma raridade nesta área ou ainda Lourdes Modesto com um percurso em sentido inverso, da culinária à Gastronomia.

Depois vem uma chusma de outros, os da gastronomia*, aqueles a quem eu chamei gastrónomos elitistas e patetas, de facto uns convencidos cheios de importância, de que não vou citar nomes, até porque me esqueceria de muitos, injustamente. Esta gente, que usa este assunto da comida e das comidas para as mais confrangedoras manifestações de exibicionismo novo-rico, falando com displicência intencional das suas refeições em sítios que o comum mortal nem sonha existirem ou, sabendo-lhe da existência, nunca poderá pagar e onde ele, por uma ou duas centenas de euros, uns trocos, entenda-se,  enche a distinta e abençoada pança, para depois arengar contra a inexplicável falta de gosto das massas ignaras que teimam em não seguir os seus doutos conselhos e vão desbaratar-se nalgum restaurante menor onde prescindem da entradita de lagosta ou das imprescindíveis trufas negras do Pèrigord.
Na verdade, estes “gastrónomos”, de quem todos conhecemos os discursos, por aí muito espalhados, até neste espaço virtual, estão longe de ocupar-se da Gastronomia, a mais viva e evolutiva das artes, até porque a decorrer a todo o momento, nos templos onde se faz a verdadeira procura daquilo de que, enquadrado pela tradição da cozinha familiar, a cada momento mais gostamos: as cozinhas de todos nós. Preocupam-se outrossim em divulgar com espalhafato de pavão como eles próprios são cultos, especiais e ricos, como bem se vê pelo que comem, como comem e onde comem.
A estes somam-se, muitas vezes em sobreposição,  os não menos patetas da gastronomia purista, gente que entende a comida como algo cristalizado num determinado momento da sua meninice ou nas receitas que espelhavam as comidas e processos de um determinado tempo ido da sua eleição e que se acantonam em saudosistas confrarias que se erigem em guardiãs de passadas grandezas, perdendo o contacto com a realidade e repetindo, evento após evento, a sua receita de museu, museu de outras épocas mesmo assim, que hoje os museus são tudo menos espaços imóveis e poeirentos.
Chamo-lhe a gastronomia canónica ou museológica e tem a mesma importância para a cozinha dos nossos tempos que os simpáticos e curiosos desfiles de época de coches e outros carros de tracção animal têm para a indústria automóvel.
Os seus tristes mentores são, armados das receitas “originais” ou simplesmente da receita que a “baronesa” tia-avó deles usava, os auto-nomeados fiscais do nosso gosto e das nossas cozinhas, atrevendo-se até, chegando por vezes ao puro insulto, a ralhar com quem, honestamente e sem outras pretensões,  mostra a comida que hoje efectivamente faz e de que gosta.
Com os egos inchados num priapismo arrogante e até ofensivo, vão estes patetas vaidosos debitando as lições estudadas nos seus gurus da moda e mestres da “cuisine”, fazendo-nos saber em que gordura se “deve” estrelar um ovo, onde é que o dito “pode” levar sal (segundo Escoffier!), como é que se faz “o” Cozido naqueles restaurantes onde eles comem comida a sério, que não tem nada a ver com essas imitações de cozido engolido pela maltinha ignorante, as couves cozidas na água que cozeu as carnes, horror…
Eu, que em mais de quarenta anos a estrelar ovos, já experimentei todas as versões possíveis e que há mais de trinta escolhi o meu modo preferido (em azeite, sal grosso e pimenta sobre a gema e comido da frigideira, com pão acabado de cozer), não os aturo, como não aturo quem me venha dizer que é assim a maneira “certa” de fazer uma maionese, que eu faço de mais de dez maneiras, com gema, com clara, com ovo inteiro , sem ovo, com leite, com óleo, com azeite, com mistura, com óleos de noz ou de sementes de abóbora, até com manteiga, até de bacalhau, a frio ou a quente, com vinagres, lima ou limão, com garfo, com varas, com varinha mágica, sempre maionese e sempre bem feita.
Não há pachorra para esta gastronomia rasteira, feita juiz que ninguém pediu, censura que a todos repugna, árbitro que ninguém quer e redentora de pecados que ela própria inventa, à boa maneira inquisitorial e à míngua de ser capaz de se reinventar.

Quanto a nós, que cozinhamos e gostamos de fazê-lo, os que não somos gastrónomos nem Gastrónomos nem sequer profissionais das comidas e que vamos no dia a dia das nossas cozinhas, inventando, combinando, experimentando as propostas que outros como nós ou Gastrónomos  a sério nos fazem, daqui e dali, adaptando essas propostas ao nosso gosto pessoal,  à nossa identidade cultural e até à abundância ou escassez da nossa bolsa, às vezes com êxito, às vezes falhando e aprendendo pelo velho método da tentativa e erro, vamos por aqui dando conta a quem nos lê do que vamos fazendo e aprendendo com aqueles que aqui connosco partilham as suas experiências e sonhamos com o dia em que pudermos gritar alto e bom som: a gastronomia morreu, viva a Gastronomia!

* Claro que há ainda uma terceira “gastronomia”, a chamada gastronomia dos críticos de restaurantes, de que Quitério foi o percursor e é ainda a referência. Estas pessoas são na realidade críticos de estabelecimentos comerciais, cotejam o seu desempenho com as recolhas tradicionais ou com as modas do momento. Podem ser uma boa ajuda para quem considera que as verdadeiras cozinhas são as da indústria hoteleira. Eu não!

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Alimado de couve coração-de-boi (reflexão sobre o bacalhau na Cozinha Popular Alentejana)

            Uma leitura atenta de uma resenha editada pela Câmara Municipal de Portel, sobre sopas alentejanas, confirma aquilo que há muito vinha intuindo pela experiência directa de degustação das actuais sopas (açordas) : nas cozinhas popular e de restauração, o bacalhau está a matar a infinidade de sabores simples e poderosos que ali se encontravam e que foram construídos por séculos de fome e pela inventiva com que estas populações lhe sobreviveram.
O bacalhau, hoje omnipresente nas açordas alentejanas, esteve longe de ter sido ali o "fiel amigo" que foi em outras regiões, pela simples razão de que não havia dinheiro suficiente para a sua aquisição.
O consumo de bacalhau foi assim restringido à cozinha das casas ricas, sendo usado pelo povo apenas em ocasiões festivas excepcionais e não constituiu assim um modelo que possa ser invocado como de uso habitual.
O consumo proteico nas famílias dos assalariados ou contratados rurais era muito baixo e resumia-se quase sempre a subprodutos do porco, alguma ave em dia festivo, isto para a carne, sardinhas "amarelas" e cação seco pela parte do peixe, muitas vezes substituídos pela inclusão de ovos nos pratos, basicamente constituídos por vegetais de subsistência, bolota, grão-de-bico, ervas, azeite e pão, sempre o pão.
É preciso bem mais do que recolhas etnográficas a esmo, como aquela que vos mencionei a abrir, para se perceber o que foi essa cozinha, que constitui para a esmagadora maioria da população alentejana rural uma referência directa a algo que para o citadino é uma abstracção, por vezes até enfeitada de algum romantismo tolo, mas para um alentejano rural idoso é apenas fome. E a fome nunca foi romântica, a fome é um insulto insuportável a todos os que por ela passaram!
Assim se explica a presença, hoje quase compulsiva, do bacalhau, o tal símbolo de abastança, em praticamente todas as açordas alentejanas, que à conta desse pretenso enriquecimento, perdem evidentemente na sua espantosa diversidade original.  Mesmo para quem ainda as faça no espaço privado das suas cozinhas, na altura de relatar ou demonstrar a receita para o estranho que a recolhe, impera a ancestral vergonha, a recusa de invocar antigas misérias e é aí que entra, postiço, o bacalhau!

Os "alimados" são, como o conhecido "alimado de cação", feito hoje com o peixe fresco e dantes com a variante seca, sopas engrossadas a farinha e feitas a partir de uma base de refogado de alhos em azeite, temperadas depois com coentros ou poejos frescos e cujo líquido era um qualquer caldo, proteico ou vegetal, se o houvesse, mas as mais das vezes, água. O "alimado" é o golpe final de vinagre, essencial para que a açorda se mantivesse segura durante as horas que passava na panela até ser consumida a meio do dia, nalgum campo distante. Na cozinha alentejana ancestral havia alimados de quase tudo e quando o “tudo” escasseava, alimavam-se uns alhos e coentros e com mais uma côdea estava feita a refeição.
Este alimado de couve coração-de-boi, que descobri por acaso (e saboreei, maravilhado) pela mão mestra de D. Rosa Máximo, lá na “minha” aldeia, é uma das tais sopas/prato esquecidas e  que não figura em nenhuma recolha, a caminho do olvido final da extinção. Mesmo assim já levava o inevitável bacalhau, este alimado de D. Rosa,
mas ficou a referência antiga, que foi a que usei para esta açorda espantosa, toda ela sabor telúrico e simples a invocar no palato outras épocas ainda recentes e de memória triste, na vida, mas que foram, ao mesmo tempo, o motor que desencadeou uma das mais desconcertantes e poderosas cozinhas rurais portuguesas.

Ingredientes:

Couve
Alhos
Azeite
Coentros frescos
Farinha de trigo
Ovos
Pão duro
Sal e pimenta
Água

Preparação:

Estufe couve coração de boi,
cortada em juliana, num fundo de azeite onde estalou alguns dentes de alho.
Junte coentros picados grosseiramente,
depois um pouco de farinha que se destina a dar corpo à sopa,
mexa bem para que não haja qualquer grumo quando adicionar água. Tempere, junte um golpe de vinagre de vinho, deixe ferver até a couve estar a seu gosto e a farinha cozida
e sirva sobre fatias de pão alentejano duro, acompanhada de ovos escalfados
de modo a que a gema esteja cremosa.