quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Feijoada de Coelho II

                      O feijão, na sua imensa versatilidade gastronómica, foi das matérias-primas culinárias que, ao longo das duas últimas décadas mais evoluiu e se impôs como acólito das mais diversas carnes, mansas e de caça, de peixes, moluscos e mariscos.

Enquanto que há vinte anos uma feijoada era uma entidade bem definida da qual havia meia dúzia de variantes, todas de carnes e enchidos, começando então a aparecer, aqui e ali, como uma extravagância tímida, uma ou outra feijoada de choco que nos deixava perplexos até que, vencida a primeira estranheza, a provávamos, hoje, é difícil encontrar alguma proteína da qual não se faça, com mérito, uma feijoada. Ainda bem!
A feijoada que hoje trago à 104ª Trilogia com a Ana e o Amândio, sujeita precisamente a esse tema, é um prato meu, diferente da outra mais “normal” que em tempos vos deixei aqui e baseia-se no Coelho Frito (como fazia a D. Cândida). Fica uma verdadeira delícia; se, no entanto, pertence ao grupo dos que não comem coelho, poderá fazê-la seguindo a receita mas substituindo o coelho por borrego, feito pelo mesmo princípio de fritura em vinho, como se indica aqui.

Ingredientes:

1 copo de tomate em calda
½ chouriço (caseiro ou de boa qualidade)
100g de toucinho gordo, em tirinhas finas
5 dentes de alho
Couve coração ou repolho (parte clara)
Feijão cozido
Sal e pimenta
Arroz branco (facultativo)

Preparação:

Este prato tem uma parte rápida e uma parte morosa, a fritura do coelho, mas que pode fazer quando tiver vagar, na véspera ou até antes.
Frite o coelho como se diz aqui e reserve-o.
Coza feijão a seu gosto (catarino, vermelho, manteiga, lindo ou preto), ou use de lata. Reserve.
Derreta as tirinhas de toucinho gordo e, quando tiverem libertado a gordura e estiverem em torresmo, adicione o tomate e os alhos fatiados. Deixe fritar um pouco e estufe então a couve cortada em pedaços, com a panela tapada e lume baixo.
 Quando a couve estiver a seu gosto, em termos de cozedura, junte então o chouriço às rodelas e o feijão, com algum do caldo de cozedura (pelo que não deve usar feijões adquiridos em frasco de vidro).
Mexa bem, quando estiver a ferver adicione então o coelho e todo o seu molho, 
envolva, rectifique sal e pimenta se necessário, e apague assim que retomar a fervura.
Deixe tapado por alguns minutos antes de servir, assim ou acompanhado por arroz branco se, como eu, gostar da combinação feijoada/arroz.


sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Salada de Orelha


                      Há certas comidas que, à força de as vermos e consumirmos sempre fora de casa, perdemos-lhe o rasto culinário e nem tentamos fazê-las de tão acostumados estamos a que outros as façam por nós.
Estão neste caso muitos dos petiscos que consumimos durante o Verão, aqui e ali, mas que, chegado o Inverno e os seus rigores, até sabiam muito bem no recolhimento e intimidade das nossas casas, com os nossos amigos e família.
A salada de orelha é um desses petiscos, transversais a todo o tipo de estabelecimento, desde a mais simples e genuína taberna às mais sofisticadas casas de “tapas” e extraordinariamente simples de fazer.

Ingredientes:

Orelhas de porco
Sal
Pimenta preta em grão
Pimenta preta moída
Alhos
Salsa
Pimentão doce
Piri-piri (facultativo, a gosto)
Azeite
Vinagre

Preparação:

Examine as orelhas antes de as molhar e, se detectar alguns pêlos, que são comuns no canal auditivo, deve chamuscá-las e raspar essas áreas.
Coza as orelhas em água temperada com sal, pimenta em grão e um ou dois dentes de alho. 
Esta cozedura deve ser feita em lume mínimo e demora cerca de uma hora e meia, em panela normal e 45 minutos em pressão.
Tendo-se certificado que a orelha está muito bem cozida, até um pouco mais que o usual, por exemplo para um Cozido (ela vai voltar a endurecer na chapa), parta-a em pedaços e leve-a a assar numa grelha de chapa 
até que ganhe uma cor tostada clara, por igual.
Passe os pedaços assados para um recipiente de serviço e tempere-os com salsa picada, pimenta moída, pimentão doce, malagueta em pó ou pasta se quiser o petisco picante 
e, por fim, azeite e vinagre.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Tajine de Bacalhau com Cominhos


     
           Para dizer a verdade, os cominhos são um dos sabores que mais raramente uso na minha cozinha. Talvez meia dúzia de pratos (e estou a ser generoso) que, por respeito à receita tradicional, lá levam estas sementes de sabor pungente que associo de imediato ao tempero dos chouriços de sangue.
Oriundos do Próximo Oriente e dos países mediterrânicos do Norte de África, o seu uso acabou por se generalizar um pouco a todo o mundo e é um componente essencial nas cozinhas do Magreb, Próximo e Médio Oriente e Índia.
Foi por isso natural que ao procurar algo para o tema “cominhos” desta 103ª Trilogia com a Ana e o Amândio a minha atenção tivesse ido para uma cozinha muito rica e que me é muito querida, a marroquina, onde o cominho está presente a cada passo, e deu-me vontade de reactivar a minha boa tajineira há uns tempos inactiva.
Depois foi o costume: fundir culturas, misturar matérias-primas de cá e de lá, imaginar sabores nunca antes experimentados e arriscar dar ao velho bacalhau luso os aromas de uma tajine rica, o cardamomo, o Ras-el-Hanout para peixe (5 épices), o óleo de argão e, claro, tudo envolvido pelas sementes de cominho, que usei inteiras já que o próprio Ras-el-Hanout já o contém, em pó.
Semeado com as minhas azeitonas alentejanas, deslumbrou esta tajine de bacalhau e cominhos, que se comeu enquanto houve.

Ingredientes:

Cebola
Alhos
Bacalhau
Ras-el-Hanout (5 épices)
Cardamomo
Cominhos
Cenoura
Batata
Pimentos
Malagueta
Azeitonas pretas descaroçadas
Sal e pimenta
Coentros frescos
Óleo de argão ou azeite

Preparação:

Como para qualquer tajine, forre o fundo da tajineira com cebola e alhos.
Coloque sobre este fundo de cebola as postas de bacalhau (usei bacalhau pequeno em pequenas postas), profusamente polvilhadas com o Ras-el-Hanout, sementes esmagadas de cardamomo e cominhos em grão.
Pode fazer este Ras-el-Hanout misturando cúrcuma (açafrão das Índias), cominhos, gengibre, coentro e pimenta preta, no almofariz.
Disponha sobre o bacalhau, cenoura às tiras, depois batata em rodelas, pimento, malaguetas inteiras ou abertas conforme o gosto por picante.
Rodeie com coentros frescos, distribua generosamente azeitonas descaroçadas, 
salpique com sal, pimenta e Ras-el-Hanout, por fim regue com óleo de argão alimentar ou azeite, junte um copo de água e leve ao lume, tapado. 
Quando levantar fervura, reduza para o mínimo e deixe cozinhar na tajineira por cerca de duas horas.
Sirva esta delícia bem quente.

sábado, 20 de outubro de 2012

A Feira das Mercês


   
            Começou hoje e prolonga-se até ao próximo dia 1 de Novembro a  Feira das Mercês, antiquíssimo vestígio do culto popular do Divino Espírito Santo que se realiza nas duas últimas semanas de Outubro, numa quinta que foi casa do Marquês de Pombal na zona saloia, entre Rio de Mouro e o Algueirão, aqui mesmo nas “barbas” de Lisboa.
Embora seja hoje uma sombra do que já foi, poderá ainda servir para encontrar produtos genuínos vendidos pelos próprios produtores, frutos secos, sementes para ter os seus próprios vasos ou canteiros de salsa e coentros, malaguetas acabadas de colher, abóboras diversas entre as quais gilas soberbas, água-pé  verdadeira e castanhas 
e, se tiver sorte e não for muito tarde, alguma vendedeira das tradicionais pêras pardas cozidas e ainda quentes.
Na restauração ambulante que constitui uma boa parte da Feira das Mercês, poderá provar esse petisco inolvidável que é a Carne às Mercês
feita durante horas nas frigideiras de barro 
e que deve pedir sem batatas fritas, ou com elas à parte, 
pois instalou-se o deplorável hábito de apresentar as frigideiras da carne com um montículo de batatas fritas por cima, nalguns dos restaurantes; a tradição vai-se vergando aos apetites modernos e dá a costumada asneira.
Mas o sabor continua uma delícia que vale a pena provar acompanhado pelo belo pão saloio, umas azeitonas e um copo de vinho.
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quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Açorda de Tomate ( migas)



                   Isto de se ser lisboeta mas ter vivido muitos anos no Alentejo, cria problemas de linguagem dignos de estudo semiótico, em muitos e diversos campos mas com especial relevância para as coisas relativas à cozinha e aos comeres.
Hoje, que o tema para esta 102ª Trilogia com a Ana e o Amândio é, nada mais nada menos que “açordas”, surge o antigo dilema entre a alma alfacinha, para quem uma açorda é aquele delicioso preparado pastoso, à base de pão e cujo expoente é a de marisco, e a alma alentejana, para quem a açorda é uma sopa de sopas de pão e a “açorda” lisboeta são as migas, pois claro! 
E no meio, eu, que gosto tanto das duas, açordas e culturas…
Prevaleceu desta vez o nascimento, perdoem-me os amigos alentejanos que tantas vezes me demonstraram, apaixonadamente, que migas é que estava “certo”, mas hoje, para falar destas vossas migas de tomate, vou chamar-lhes como por aqui se fez e faz, Açorda de Tomate!
A açorda de tomate, outrora muito vulgar, é um prato que, quando comparado com frequências passadas, se pode considerar como que em declínio e hoje já só aparece numa das suas versões, a que leva cebola e coentros para além do tomate, que era a versão usada para acompanhar peixe frito, tendo a versão para carne feita apenas com tomate, alho e por vezes massa de pimentão, caído no esquecimento.
É esta última açorda de tomate, quase não refogada, que eu mais aprecio e que evidencia o sabor e os ácidos do tomate bem maduro do Verão, também ele uma raridade que já quase não chega às cidades, que aqui vos vou deixar, neste caso a acompanhar uma outra delícia, os croquetes de rojões, de que um dia vos darei conta.

Ingredientes:

Pão duro
Azeite
Alhos
Massa de pimentão (facultativa)
Tomate bem maduro
Sal e pimenta

Preparação:

Pele o tomate, desfaça-o grosseiramente entre os dedos e leve-o ao lume com alguns dentes de alho e massa de pimentão se quiser, num fundo de bom azeite.
Demolhe bem pão duro, de massa firme como o alentejano e outros pães rústicos.
Deixe o tomate cozinhar, evaporando os seus sucos mas sem deixar fritar (refogar). Quando isso começar a acontecer, junte-lhe de uma só vez o pão encharcado, 
tempere de sal e pimenta e vá mexendo sempre 
até que a açorda, bem cozida, se solte  do fundo do tacho.
Vire esta açorda na pedra untada de azeite, 
envolva-a e molde-a, com cuidado para não se queimar, formando um “chouriço” que recolhe para uma travessa.
Serve para acompanhar carnes de porco, neste caso foram croquetes de rojões, um petisco inolvidável, cuja história fica para um outro dia.
Para acompanhar peixe, a açorda de tomate começa por um refogado de cebola, alho e tomate, mais puxado que este e é costume usar-se coentros e alguma hortaliça incorporada, como grelos ou couve migada. 

domingo, 14 de outubro de 2012

Salmão Fumado



                    Seja do que se cria na Natureza, que tem a seu favor o ser excelente e contra si ser tão caro que só para dias de festa, seja o que é criado para ser comido todos os dias e por todas as bolsas, o salmão é sempre uma festa de versatilidade e sabor.
O sabor deste peixe magnífico é particularmente realçado nas preparações em que a confecção não é feita através do calor, deixando no músculo alaranjado os sucos e gorduras intactos do peixe cru. Está neste caso o gravlax de que vos falei aqui e, claro, o salmão fumado do nosso contentamento que compõe ou remata   com nota de ouro tudo onde entra, isto se se gosta dele assim como eu gosto.
A única coisa que não aprecio no salmão fumado é o preço, bastante injustificável perante a facilidade com que se faz em nossa casa, depressa e bem. Assim:

Ingredientes:

1 Salmão fresco
Sal fumado*

Preparação:

Compre um salmão com cerca de três quilos.
Com o auxílio de uma faca muito afiada, separe os filetes do salmão cortando ao longo da espinha. 
A cabeça juntamente com a espinha e a carne que sempre lhe fica agarrada é matéria-prima para uma excelente sopa de salmão.
Passe os dedos sobre a linha média de cada filete, no sentido cauda-cabeça e sinta uma fiada de espinhas que sobressai do peixe. Com uma pinça, ou um tirador de espinhas, se o tiver, ou ainda com um alicate de pontas, agarre a extremidade de cada uma destas espinhas 
e puxe na direcção em que está inserida.
Tire deste modo todas as espinhas de cada filete.
Envolva os filetes em sal fumado, 
junte-os com a pele para fora, envolva-os em película aderente, que deve furar para que o líquido que se vai formar possa sair.
Ponha este pacote entre umas tabuinhas ou algo assim rígido e ate com voltas sucessivas de elástico de modo a que o peixe fique sujeito a uma grande pressão.
Deixe por 20-24horas. Abra, lave todo o sal que tenha ficado aderente, seque e deixe por umas horas no frigorífico, antes de começar a consumir.
Um salmão de 2,7 kg, produziu 1,5 kg de salmão fumado, delicioso.
Nota:
O sal fumado é o elemento difícil do processo. Como faço muitos fumados em casa, costumo abastecer-me em quantidade quando visito Espanha, onde se pode adquirir em qualquer supermercado.
Em Portugal, dizem-me que se pode encontrar no El Corte Inglés, embora não o tenha nunca confirmado. Também se pode fazer em casa com algum trabalho de ar livre e paciência; se houver algum leitor interessado, é só perguntar.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Escabeche de Trutas

                       Os escabeches cujo nome deriva do árabe 'iskabâj e talvez do catalão escabetx, são os herdeiros de uma técnica rudimentar e antiquíssima de conservação dos alimentos, aproveitando as propriedades conservantes dos vinagres.
Muito usados pela marinhagem e pelas populações do interior com menos acesso ao sal como conservante, quinhentos anos após os Descobrimentos, em que também eles partiram para o mundo, os escabeches foram disseminados e evoluíram por todas as cozinhas, por todo o planeta, da Europa ao Brasil ou ao Japão, onde a técnica se aparentava com uma outra, milenar, das conservas japonesas de peixe em arroz azedo, que daria depois o conhecido Sushi.
Já não usado como técnica de conserva, ficaram no entanto pratos deliciosos, desde uma infinidade de peixes, às carnes, caça, etc. Só em Portugal há bem uma dúzia de variantes de escabeches os mais diversos.
Sendo o tema que vai inaugurar esta 2ª centena de Trilogias, a 101ª com a Ana e o Amândio, irei deixar como escabeche um prato que conheci em criança, pela mão de um amigo da família que, de Viseu, nos presenteava de quando em quando com umas latas que chegavam via C.P., cheias de incríveis trutas de escabeche como se faziam e ainda hoje se fazem na Beira Alta, embora eu suspeite que de um modo um pouco mais folclórico do que então. Vi este ano na Feira de S.Mateus, em Viseu, venderem-se uns ninhos de enguias de escabeche a 20€ cada!
Naturalmente, não igualei esse sabor de infância, protegido como todos os sabores de infância por esse misterioso sortilégio que impede a sua repetição plena. Também na altura as trutas viviam ainda nos rios e não em tanques como estes da região de Aveiro, onde estas nasceram, viveram e morreram. enfim…
De qualquer modo, um escabeche é uma das melhores maneiras de preparar um peixe que, ele próprio, bem podia ser melhor, como é o caso das trutas a que quase todos temos acesso: as de aquacultura.

Ingredientes:

Trutas selvagens ou de aquacultura
Sal
Farinha
Azeite
Cebola
Alhos
Pimenta em grão
Louro
Vinagre de vinho branco
Vinho branco

Preparação:

Amanhe* as trutas eviscerando-as e removendo cuidadosamente o baço, que é um cordão vermelho que acompanha a espinha ao nível da barriga, do lado de baixo.
Pode fazê-lo com o auxílio de uma faca pontiaguda, rebentando-o
e esfregando-o com um pincel sob água corrente.
Salgue-as, passe-as por farinha, sacuda muito bem o excesso e frite-as
num determinado volume de azeite até estarem douradas.
Limpe o azeite em que fritou as trutas de quaisquer resíduos e frite neste azeite cebolas às rodelas, pimenta em grão, louro e alhos fatiados.
Quando a cebola estiver mole e translúcida, junte então o mesmo volume que usou de azeite, de vinagre e outro tanto de vinho branco, sal, deixe ferver por dez minutos em lume baixo
e regue as trutas fritas, que antes dispôs bem arrumadas num recipiente fundo.
Deixe em repouso por, pelo menos, um dia, melhor mesmo é esperar dois antes de servi-las, acompanhadas por batatas cozidas que se temperam no prato com o molho do escabeche.
Nota:
Há um pormenor essencial no amanhar das trutas, sejam elas de rio ou de viveiro, que permanece bastante ignorado, até pelos profissionais de venda de peixe.
Trata-se da questão do escamar.
As trutas têm uma camada de escamas pequeníssimas, cada uma quase invisível a olho nu, que são a verdadeira fonte de sabor deste peixe. A prática muito difundida de escamar as trutas como se de qualquer outro peixe se tratasse, transforma-as em algo desenxabido e até penoso de comer.
Se, como a maioria das pessoas, quando adquire trutas pede para lhe amanharem o peixe, não esqueça de ressalvar este aspecto antes que seja tarde demais. Terá, de qualquer modo, de fazer em casa  a remoção do baço ou dos seus restos, pois nunca irá encontrar um vendedor que execute a contento esta pequena operação essencial.