quarta-feira, 7 de agosto de 2019

“Ankimo”- Foie-gras do mar




               Em quase todos os vertebrados, o fígado tem, entre muitas outras tarefas, a obrigação de transformar em gordura o excesso de nutrientes ingeridos em relação às necessidades e armazenar esta gordura, fonte concentrada de energia, em locais determinados do corpo, onde fica à espera de ser utilizada quando uma época de penúria alimentar assim o exigir.
Isto passa-se com todos os mamíferos e vertebrados terrestres. 
Já no reino dos peixes as coisas não se passam sempre assim: se naqueles peixes que conhecemos como peixes gordos, a sardinha, o atum, o salmão, a cavala, truta, enguias, etc. se passa o mesmo, isto é o peixe está mais ou menos gordo consoante tem mais ou menos gordura nos músculos, sob a pele e na barriga, já nos peixes magros, o bacalhau, carapau, corvina, linguado, pescada, robalo, etc, essa reserva de gordura imprescindível à sobrevivência nas épocas de fome é feita no próprio fígado. 
O músculo permanece sempre magro e o fígado cresce e guarda em si próprio as gorduras de reserva.
Quando vos falei dos peixes magros, os tais do fígado gordo, omiti propositadamente da lista aquele cujo fígado, pela sua importância gastronómica é por muitos considerado (e também por mim!) como o foie-gras do mar: o gordíssimo fígado do tamboril!

O ankimo, assim se chama o fígado de tamboril no Japão, é reverenciado e disputado como chinmi, ou iguaria rara, com que se compõem os mais caros e exclusivos sushi.
Por cá, há muitos fígados de tamboril à disposição e, para falar verdade, o certo é que quase não se lhe liga importância, é um ingrediente barato, às vezes grátis, que alguns usam em caldeiradas e pouco mais. É o que perdem!

Suavíssimo na textura, alia no sabor a delicadeza de um verdadeiro foie gras de ganso ou pato com os traços e aromas de mar. Esquisito? Nem por isso. É sim, uma verdadeira delícia.

Ingredientes:

Fígado fresco de tamboril
Sal e pimenta
Vinagre
Molho holandês
Acompanhamentos

Preparação:

É muito fácil encontrar fígados de tamboril, no mercado ou peixaria, onde é geralmente vendido a preço muito baixo e às vezes até grátis, pois é vulgar que o cliente compre o peixe e rejeite o fígado.

Tem aspecto rosado ou alaranjado, está por vezes ensanguentado e deve pedir para lhe tirarem logo a vesícula biliar, que se vê na face posterior do órgão e que o estragaria irremediavelmente se rebentasse e derramasse a bílis sobre o fígado.
Em casa, meta-o numa tigela coberto de água fria com vinagre durante duas ou três horas, de modo a limpar o excesso de sangue que possa conter.

Após este tempo de depuração, em que a cor do fígado clareia nitidamente,
há que retirar-lhe os vasos grandes e canais bilares que formam uma espécie de árvore na parte posterior e que se desprendem facilmente com o auxílio de uma faca bem afiada ao mesmo tempo que se vão puxando.
Cortem-se então em fatias, temperem-se apenas com sal e pimenta

e levem-se a uma frigideira ou chapa bem quente e untada, onde fritam rapidamente de cada lado, na sua própria e abundante gordura.
Sem deixar cru, deve no entanto evitar que, percam o gras e acabem por ficar duros  e secos. Dez a quinze segundos de cada lado com lume muito forte é suficiente para deixar este foie gras pronto para o prato.
Cebola caramelizada, vegetais diversos numa ratatouille, os acompanhamentos são algo demasiado pessoal para estarem aqui a ser indicados. As suas preferências e gosto mandam.
Como acompanhamento, usei lâminas de cogumelo do cardo (Pleurotus eryngii.) grelhadas na gordura que o fígado deixou e feijão verde, tudo regado com molho holandês que fiz com uma redução bem escura de vinagre balsâmico.


terça-feira, 6 de agosto de 2019

As ovas (técnica)


              A grande maioria dos peixes apresentam uma curiosa forma de reprodução que, à primeira vista, parece redundar num enorme desperdício de meios e energia. Baseando as possibilidades de sobrevivência de alguns indivíduos da sua prole numa massiva produção de ovos, geralmente muitos milhares, às vezes até milhões, as fêmeas têm assim grandes ovários onde esses ovos se formam até à desova, e é a esse precioso órgão de que hoje aqui falamos que se chama “ovas”.

As ovas aparecem à nossa mesa de diferentes formas. Cozidas, fritas, panadas, em conserva, em açordas, no caríssimo e precioso “caviar”, em saladinhas temperadas a fazer de puxavante a alguma cerveja “conversada” entre amigos ou de “amuse-bouche” sobre a mesa do restaurante enquanto os condutos não chegam.

A maior parte das receitas de ovas parte de ovas cozidas e embora a sua cozedura seja algo de simples, ovas cozem em água e sal em 10 a 20 minutos conforme o seu tamanho, o certo é que é nesta operação que ocorrem por vezes (muitas vezes!) alguns dissabores que, não implicando perda total e por vezes nem notados depois, à mesa, deixam uma sensação frustrante em quem as faz e, embora os convivas até possam não reparar por falta de bitola comparativa, provocam uma desvalorização nítida no sabor final. 
Refiro-me aos tão odiados rebentamentos da película que envolve os pequenos ovos e que no fim fazem a nossa ova parecer mais uma couve-flor do que as firmes rodelas que tínhamos sonhado quando as adquirimos.

É o que hoje aqui deixaremos remediado!

Ingredientes:

Ovas grandes
Sal

Preparação:

Embora as ovas de peixes como o sável, o esturjão, a truta ou o salmão, feitas de grandes ovos, sejam excelentes para pratos e preparações específicas, são as ovas feitas de ovos pequenos como as da maioria dos peixes que desovam no mar que melhor se prestam a ser cozidas. 
Estão neste caso as ovas de pescada (frescas) e as ovas de bacalhau, que são as mais facilmente acessíveis, congeladas.

Ao escolher ovas para cozer, guie-se pelo tamanho: aqui, quanto maior, melhor! Trata-se de perceber o grau de desenvolvimento dos pequenos ovos, uma avaliação impossível de fazer em ovas congeladas. 
Uma ova grande é quase de certeza uma ova já bem maturada, com os ovos já bem desenvolvidos, enquanto uma ova pequena, embora possa ser também boa e ser apenas pequena porque o peixe também era ainda pequeno, pode também tratar-se de uma ova imatura em que os pequenos ovos ainda não estão formados e que, após cozinhada, se revela uma “massa” sem a textura granulosa nítida que deve ter qualquer ova.
Mais vale uma grande ova de 500g ou até de um quilo que tenha depois de ser dividida por quatro, do que pequenas ovas de 50 ou cem gramas para dar duas más ovas a cada pessoa.
Deixe descongelar a ova no frigorífico, tempere com sal grosso e deixe por duas horas em ovas grandes ou uma hora em ovas mais pequenas.
As ovas salgam muito facilmente mas no processo de cozedura que vamos usar não pode contar com o sal da água de cozedura.
Corte o septo que une as duas partes de uma ova, de modo a ficarem separadas.

Enrole cada parte da ova em película aderente, de modo a formar como que uma segunda pele. Cinco ou seis voltas da película em redor da ova é suficiente.
Ate uma das extremidades com um fio, depois a outra, de modo a que cada metade de ova fica com o aspecto de um chouriço.

Ponha a cozer em água, que pode ser a dos acompanhamentos, sendo que uma ova grande demora cerca de 20 minutos em ebulição e uma pequena cerca de metade deste tempo.

A película vai funcionar como reforço da pele da ova, impedindo-a de rebentar e conservando assim todo o seu sabor, sem lavagem na água de cozimento e uma forma perfeita para posterior fatiamento ou apresentação. Antes de servir, retire a película com uma faca ou tesoura ou ainda cortando a película numa das extremidades (a mais grossa) e espremendo a ova para fora da película como se fosse uma bisnaga.

Sirva assim
ou deixe arrefecer para servir de base a outros pratos.