sexta-feira, 27 de abril de 2018

Um fumeiro na cidade


                     Se visitar uma dessas “Feiras de Fumeiros” com que os grandes supermercados periodicamente nos tentam aliciar, vai encontrar uns cenários comerciais em que tudo tenta parecer rural, rústico e genuíno, umas ramagens de loureiro murcho e uns alhos, às vezes de plástico, dependurados das barraquinhas cheias de umas porcariazinhas industriais com nomes serranos e poéticos a ver se disfarçam as enormidades químicas com que são feitos e nos levam ao engano.
Nitratos, nitritos, emulsionantes, dextrose, reguladores de acidez, antioxidantes, sequestradores de água, fosfatos, corantes, é um fartar vilanagem de químicos, uns impostos pela legislação, outros impostos pela ganância do lucro dos tais industriais de produtos “caseiros”.
Neste campo têm mais sorte as gentes do Norte, onde ainda se vão fazendo algumas coisas boas embora abusivamente caras. 
No Sul, a miséria é a regra e se não conhecer uma qualquer “Dona Maria” que mate porco e ainda faça uns enchidos que lhe “dispense”, está entregue aos bichos!
Abaixo de Coimbra, chega apenas um bom toucinho fumado (bacon), a preço de ourivesaria, feito por uma empresa minhota (de Ponte de Lima). De resto encontra estas coisinhas cor-de-rosa, que se desfazem em água na frigideira em vez de se desfazerem em gordura
e que conseguem esse feito milagroso e nunca visto de, após a cura, serem mais altos do que o toucinho de que foram feitos.
Se, como eu, não gosta de comer o que lhe impingem, não conhece nenhuma “Dona Maria” e não tem dinheiro que chegue para o tal bacon de Ponte de Lima, pode fazê-los! Afinal, apenas duas gerações nos separam do tempo em que nas casas se fazia lume de chão e à falta de frigorífico, era com sal e com fumo que se conservava comida para todo o ano.
Um fumeiro não era nenhum bicho-de-sete-cabeças e continua a não o ser!
Basta um pequeno quintal ou mesmo uma varanda aberta para conseguir essa maravilha que é um fumeiro caseiro. Dois dias (um fim-de-semana!) é quanto basta para a operação de fumagem. Tem um vaso velho, dos de barro?

Material:

Vaso de barro (ou um daqueles fogareiros de assar sardinhas)
Berbequim com broca de “pedra”
Carvão vegetal
Pedaço de rede metálica de malha fina
Madeira bem seca de azinho

Confecção:

Com o auxílio de um berbequim, faça furos no fundo de um vaso de barro, de modo a permitir alimentar a combustão do carvão.

Encha o vaso até cerca de um terço da sua altura, com carvão vegetal, deite umas acendalhas e acenda.

Quando as acendalhas estiverem totalmente consumidas e o carvão aceso, deite sobre eles uns pedacinhos de madeira bem seca
de azinheira (na falta, sobreiro, oliveira, laranjeira, nunca pinho ou outra resinosa).
Cubra com uma rede metálica que se destina a que a madeira não arda com chama viva e fumegue.

Deixe um metro de distância entre o fumo e o que estiver a fumar, neste caso duas papadas de que vos falei aqui e toucinho entremeado que já foi temperado e parcialmente desidratado e que em breve será um bacon delicioso!



sexta-feira, 13 de abril de 2018

Papada fumada


             Trazida para o ambiente alentejano por “galegos”, “ratinhos” e outras maltas que chegavam das Beiras e mais a Norte para os trabalhos agrícolas sazonais do montado e das searas, a papada é um vestígio do unto, gordura temperada, ensacada e fumada que era usada nas cozinhas populares beirãs e transmontanas.
Hoje virtualmente extinta, feita aqui e ali como curiosidade histórica, a papada fumada foi muitas vezes conduto e petisco de taberna de ranchos de tal forma pobres que tinham de recorrer às partes menos nobres do porco, neste caso a manta de toucinho que corresponde ao pescoço do porco, muitas vezes ensanguentado, trazendo agarrada parte da glândula parótida e hoje usada para extracção de banha e fabrico de torresmos pela comunidade africana e pouco mais.
Não tendo acesso às possibilidades de uma cozinha ou a tripa nas casas em que ficavam durante a sua estadia nas herdades, esta peça entremeada e rejeitada era conservada por meios básicos, uma salga ligeira, tempero com a massa de pimentão e uma fumagem sobre as brasas onde se aqueciam à noite, às vezes ensacando a papada numa meia, para melhor a dependurar ao fumo.
O certo é que as papadas fumadas se tornaram populares não só entre migrantes mas também entre ganhões e o caso não é para menos dada a excelência de sabores obtidos de uma preparação que, como tantas provenientes do Alentejo pobre, se consegue com quase nada.
Se não souber onde encontrar à venda uma papada fumada, tarefa quase impossível no comércio de fumeiros, poderá sempre fazê-la, aliando ao prazer do petisco em si, um outro que vem da descoberta de gestos perdidos há muito e que dá outra dimensão à serena degustação de umas finas fatias de papada.

Ingredientes:

Papada de porco
Sal
Massa de pimentão

Preparação:

A aquisição da papada propriamente dita pode não ser fácil em ambiente citadino mas poderá sempre encomendar no seu talho que a mandará vir para si ou então comprá-la nos mercados mais periféricos, que abastecem as franjas mais pobres da população que vivem em cinturas urbanas.
Parece uma tira de toucinho entremeado com bastante gordura e restos de uma víscera que é a glândula salivar e que deverá deixar.

Lave, retire o courato e apare.

Corte no sentido do comprimento,
de modo a fazer duas tiras e a expor a camada interna de músculo que, de outro modo, dificilmente poderia secar e salgar.

 Esfregue   sal e deixe durante 24 horas.
Lave de novo, seque e barre com massa de pimentão, embrulhe em película e deixe no frigorífico por uma semana.
Faça um lume de carvão e ponha madeira de azinho seca sobre as brasas de modo a que se consuma devagar. A papada deverá estar por cima pelo menos a um metro de distância de modo a que seja fumigada mas não apanhe calor.
A fumagem deve durar dois ou três dias, após o que a papada está pronta sendo apenas necessário que seque o tempo necessário a que adquira a consistência de um toucinho fumado, o que demora entre duas a três semanas conforme a humidade do ar.

A carne da papada, atravessada por inúmeros veios de gordura,
tem um sabor único e é ainda melhor fatiada muito fina, ficando a raiar o divino se grelhada ou frita como o bacon.