quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Umas Migas Gatas

                 Estas migas gatas pareceram-me álibi perfeito para falarmos um pouco sobre essa imensa e generalizada confusão entre História da Cozinha (ou Cozinha Histórica) e Cozinha Tradicional, conceitos que encerram em si aspectos quase antagónicos mas que teimam em ser misturados, apesar de imiscíveis, num amálgama infeliz que muito mal tem trazido à gastronomia portuguesa. Dessa persistente confusão entre o que é do domínio da História, felizmente imóvel, e o que é do domínio da Tradição, felizmente dinâmica, têm nascido incontáveis tentativas normalizadoras de pratos que, sendo do domínio popular e das cozinhas familiares, apresentam, a partir de uma matriz comum que as denomina, incontáveis variantes e para os quais qualquer normalização é forçosamente redutora e empobrecedora.
É por isso que quando falamos de cozido à portuguesa, pastéis de bacalhau, pataniscas, meia-desfeita, peixinhos da horta, arroz de pato ou migas gatas, estamos a falar de cozinha tradicional, cuja principal virtualidade é precisamente o modo como a tradição do prato se foi modificando e adaptando às pessoas e aos tempos e que, refractários a normalizações canónicas e às chamadas receitas “fixadas”, explodem nas criatividade e dinamismo que fazem a cozinha viva de um povo. Só dentro da minha família e na da minha mulher, pude contar seis maneiras de fazer os pastéis de bacalhau, todas boas e todas diferentes da receita que alguém “fixou” há anos mas que nem por isso fixou o modo como cada um faz os seus pastéis de bacalhau, nem tão-pouco fez com que existam pastéis de bacalhau “certos”, apenas bons ou maus.
Já na cozinha histórica, a tal que tantos teimam em chamar “tradicional”, a questão é, precisamente, a preservação de uma receita, a reconstituição de uma época culinária, toda uma museografia culinária cuja principal virtualidade é precisamente o rigor e a inflexibilidade de métodos e ingredientes, garante de que serão na boca, exactamente aquilo que o seu nome promete: Bacalhau à Brás ou à Gomes de Sá, Carne à Mercês, Tripas à Moda do Porto, Pudim Abade de Priscos ou Pão de Rala. Isto é Cozinha Histórica; posso recriar a partir dela mas nunca apropriar-me dos seus nomes!
A cozinha tradicional popular alentejana, repositório do que se foi inventando em séculos de fome e privações, fazendo autênticos milagres gastronómicos a partir de quase nada, teve no pão e no seu aproveitamento a sua grande base. As açordas (sopas de pão) e as migas (massas recozidas de pão duro e água), formam um bloco em que com pão, água, sal, azeite, uma ou outra erva aromática, algum ovo, toucinho da salgadeira anual ou peixe seco, quando os havia, se fizeram uma miríade de sabores simples e poderosos que ainda hoje nos arrebatam e encantam, como estas migas gatas, que cada família apurou a partir da sua base comum de pão, bacalhau e azeite, numa sabedoria de texturas e sabores mais ou menos complexos mas sempre migas gatas. Estas, feitas pela minha filha Inês a partir do que há dias viu fazer em cozinha eborense de amigos, evoluíram segundo a história e preferências daquela família, num ano alguém não quis o bacalhau e fez-se um ovo, noutro ano houve quem quisesse os dois, o prato hoje vai assim, misto entre as migas gatas mais tradicionais do Alentejo e a “miga recheada” da Beira Alta, sendo o exemplo daquilo que é, afinal,  a Cozinha Tradicional.

Ingredientes:

Pão alentejano, duro
Postas de bacalhau demolhado
Ovos
Azeite
Alhos
Sal

Preparação:

Coza postas altas de bacalhau, levando-as ao lume em água fria
e interrompendo o processo mal a água comece a querer borbulhar. Lamine alguns dentes de alho sobre pão alentejano cortado em fatias e que esteja num recipiente que permita o escoamento, dentro de outro que permita recuperar o líquido sobejante. Estrele ovos em azeite e reserve.
Retire as postas de bacalhau para uma travessa de serviço e regue o pão com o caldo fervente,
com o sal rectificado tendo em conta o sal que o bacalhau deixou na água. Repita com a água que escorreu, as vezes necessárias a que o pão fique bem molhado. Passe para uma tigela, junte o azeite onde estrelou os ovos e desfaça o pão com uma colher de pau,
de modo a que fiquem ainda nítidas as côdeas.
Sirva as migas gatas com o bacalhau e o ovo estrelado, tudo regado com um fio de azeite cru.


3 comentários:

Unknown disse...

Porque não escreve um livro?

Unknown disse...

Porque não escreve um livro?

Anónimo disse...

É curioso que jamais me lembraria de juntar um ovo estrelado nas migas...
Agora sobre a prosa, estou em perfeita sintonia consigo...
Bem haja

António Castro

ps. estou de acordo com o outro post